REFLEXÕES - Curadoria: Mediações necessárias.

Projeto "EX LIBRIS", detalhe, Isaac, 2019.

Mediação é um termo usado para descrever a busca de equilíbrio em estados de conflito, usado no ambiente jurídico. No contexto da Arte Visual entende-se a Mediação como o processo de criar interação entre Obras e pessoas...
Não é simplesmente descrever ou explicar uma ou um conjunto de Obras, mas proporcionar, a quem aprecia, meios para que desenvolva sua própria capacidade de reflexão e análise. Obviamente não é um trabalho fácil, a Educação formal que temos não dá conta nem do básico, tampouco deste tipo de aproximação, esta foi a ideia da criação da disciplina de Educação Artística no primeiro e segundo graus de ensino na década de 1970 no Brasil, cuja falência nos levou ao estado de inanição estética em que vivemos hoje, ai é que entra a tal Mediação.

As transformações pelas quais a Arte Visual passou desde os primórdios da Modernidade em fins do século XIX até meados do século XX e, principalmente, a transição para a contemporaneidade instaurada pela Pós-Modernidade colocou novas questões sobre a Arte, seus procedimentos conceituais, pragmáticos e estéticos criando mais problemas do que soluções, tanto para os teóricos, pensadores e críticos quanto para as pessoas, coitadas, simples apreciadoras...
Mediação deixou então de ser um processo passivo e se tornou ativo: Não basta estar, tem que participar!

A busca pela "interatividade" motivada pelas novas proposições artísticas e pelo afastamento compulsório do público, fez com que as instituições passassem a se preocupar com a dificuldade crescente das pessoas em dialogar, se apropriar ou, no mínimo, assimilar dados, informações ou conceitos veiculados pelas Obras de Arte. Assim, as buscas por uma espécie de abordagem pedagógica sobre a Arte levou a criação, desde a década de 1970, de novos conceitos como Leitura Visual, Literacidade Artística, Comunicação Visual, Educação Estética, Educação Artística... e mesmo aos conceitos operacionais destinados a criar elos de ligação entre Obras e público como os de Curadoria, Projeto Expositivo, entre outros na tentativa de resgatar as pessoas da incompreensão da Arte, já que a Educação Formal não consegue dar conta disso.

Nos últimos anos, em especial a partir da década de oitenta do século passado, temos ouvido falar em “Curadoria” quando se trata de organização de eventos artísticos ou culturais. Este é um termo que tem sido usado e aceito em várias regiões do globo para se referir à produção de eventos nestas áreas. Mesmo que tenha sido tomado de empréstimo da área jurídica, que se referia à nomeação de alguém para administrar bens de menores ou de pessoas que, por um motivo ou por outro, eram incapazes ou impedidas de gerir seus próprios destinos, passou a ser bem-vindo na Arte.
Inspirado na administração pública em que Conselhos Curadores são criados para gerir bens institucionais, mas de qualquer modo, o termo “Curador”, acampou no contexto da arte e, pelo jeito, não vai mais sair.

É possível justificar a existência dos curadores pela crescente necessidade de especialização requerida pelo contexto da arte contemporânea, por um lado, para dar conta de suas idiossincrasias e inovações e, por outro, para intermediar a relação entre as obras e o público.
É importante destacar que se instaurou um novo campo de estudo e atuação profissional para a formação artística ampliando o campo do conhecimento e do pensamento artístico junto aos historiadores, estetas, teóricos e críticos.
Os grandes eventos artísticos têm reforçado a necessidade da presença destes especialistas a cada nova edição. É o que está ocorrendo, por exemplo, com as bienais no Brasil e no exterior. É difícil pensar, hoje em dia, numa mostra que prescinda de curadoria. Até mesmo as mostras individuais têm-se valido dela para tornarem-se mais eficientes, mais claras e melhor entendidas pelo público. Neste sentido a interação entre Apreciação-Educação-Formação do público é também uma missão institucional.

Também na academia esta área vem se mostrando como uma especialidade para a formação graduada e pós-graduada, diversas instituições de ensino superior vêm organizando cursos com esta finalidade. Embora a ideia de curadoria tenha sido vítima de "maus tratos" e enfrentado a resistência de artistas e críticos de arte, especialmente no que se refere ao aspecto autoral, já que a autoria das Obras compete com a autoria da Curadoria, logo, há mais de um autor em diálogo num mesmo processo.
Parecia que o artista perdia o primado da autoria, pois o curador diz ao público como apreender e dialogar com a obra, coisa que era de exclusividade do artista e o crítico, por sua vez, perde a primazia da análise em primeira mão, pois ao leitor já foram antecipadas dados que o auxiliam a tirar suas próprias conclusões. Tanto um quanto outro se sentiram desprestigiados e tentaram minimizar o efeito da Curadoria, ainda bem que não conseguiram.

É necessário entender que, justamente pelas condições da arte contemporânea, que o surgimento da curadoria é, por assim dizer, uma condição necessária e que leva tanto ao aprofundamento da função crítica quanto do conhecimento sobre Arte. O curador, ao selecionar obras e organizar o modo de mostrá-las, passa a exercer, de antemão, uma função que antes cabia ao crítico, mas que era exercida a posteriori. Nas condições da arte atual, não é mais possível esperar pela intermediação do crítico para a compreensão das obras já que, grande parte delas é realizada em “tempo real”, ou seja, performances, instalações, intervenções devem ser compreendidas e assimiladas “on time”, portanto, se dependerem de algum esclarecimento, ele deve ser dado simultaneamente, ou seja, ao mesmo tempo em que o evento ocorre, senão corre-se o risco de falar ao vazio.

Obviamente o curador não é artista nem crítico ou, pelo menos, não exerce estas funções ao realizar o processo de curadoria. Embora sua atuação possa ser confundida ora com um, ora com outro já que há uma “assinatura” no conjunto da mostra que revela um percurso, uma proposição e, até mesmo, uma condução autoral. Entretanto, não há curador capaz de transmutar água em vinho, tampouco prescindir do artista ou do crítico, a cada um cabe a habilidade do seu fazer.
Penso que o curador tem se configurado como mais um elemento que, ao inserir-se no contexto ou no sistema de arte da atualidade, o faz para lhe dar-lhe mais eficiência cultural e institucional. Ao fim e ao cabo, vemos que o curador vem se tornando um dos responsáveis pela mediação entre arte e público, tanto quanto são os críticos e demais teóricos da arte.

A complexidade da qual vem se revestindo a arte nas últimas décadas, mostra que ela não é coisa para amadores, ao mesmo tempo, precisamos acabar com a ideia de que a arte é um universo de código fechado que só serve para os artistas e seus agregados. Fica claro que sem Mediação eficiente a Arte estará cada vez mais distante do público. Sem orientação será cada dia mais difícil integrá-la ao contexto social como um elemento significativo da nossa cultura. É neste sentido que tanto a crítica quanto a curadoria, são elementos importantes para a formação do pensamento estético e contribuem, sem sombra de dúvida, para o crescimento da arte e para o desenvolvimento de suas análises, portanto a Crítica e a Curadoria são duas áreas coadjuvantes, integradas e responsáveis, ao mesmo tempo, pelo processo de construção de um projeto que visa a consolidação do pensar, do fazer e da compreensão da arte como Conhecimento e bem cultural imprescindível ao ser humano.

Agradeço a leitura e o compartilhamento... ou mediação!

REFLEXÕES - A questão da crítica em Arte

É comum ouvirmos dizer que a crítica é responsável pelo julgamento das Obras de Arte, ou seja, a responsável por aferir valores e dizer quais obras devem ou não pertencer ao Sistema de Arte.
O termo crítica é o substantivo feminino de crítico, cuja origem vem do grego kritikós resultando no latim criticu, cujo sentido, em geral, se refere à apreciação, valoração e julgamento de Obras de Arte. 
A meu ver, a atitude crítica é sempre uma conduta analítica que parte da apreciação e tem como objetivo estabelecer ou reconhecer aspectos intrínsecos ou extrínsecos às Obras mediante comparação ou confrontação com as demais manifestações representantes da mesma espécie, lastreados numa mesma cultura ou ambiente social de tal modo que os parâmetros sejam identificáveis e plausíveis dentro daquele contexto.
A crítica pode ser feita sobre um conjunto de obras constituído pela produção de um autor, de um período ou mesmo sobre uma só obra que chame a atenção ou mereça destaque no contexto da cultura. 
Acredito que a atitude crítica deva ser sempre analítica e qualitativa e não só opinativa cujo resultado seja apenas um julgamento raso de valor: bom ou ruim ou pessoal gosto ou não gosto. 
Deve estabelecer parâmetros entre as condições sócio-culturais, técnicas e estéticas de um lugar, período ou manifestações cujo resultado seja capaz de mediar a relação entre a produção artística e o público e, assim, promover o conhecimento sobre Arte. 
Pode-se refletir ainda à respeito de que valores são adequados para uma mediação crítica. É comum ouvir que há dois tipos de crítica: uma positiva e outra negativa. A positiva, em geral, enaltece a obra ou o criador e, ao contrário, a negativa denigre um, outro ou ambos.

Podemos citar como exemplo negativo, o caso da crítica feita a Anita Malfatti por Monteiro Lobato, realizada com extremo mau humor e agressividade, motivada, talvez, pela sua incapacidade de compreender as mudanças pelas quais a arte daquela época passava. Se quiser ler acesse o texto no meu ambiente virtual de aprendizagem: http://www.artevisualensino.com.br/index.php/textos?start=50

Penso que os valores ponderados nas análises críticas devem ser embasados no conhecimento estético construído no percurso da história. Há momentos em que aspectos técnicos são mais importantes ou evidentes do que valores estéticos ou conceituais e, em outros momentos, pode-se observar o contrário. Logo a crítica deve se preocupar com sua vigência, sua validade no seu tempo e no seu lugar. 

Contemporaneamente as atitudes críticas que defendam valores absolutos, rígidos ou definitivos não encontram respaldo no contexto já que a cultura é um organismo dinâmico e em constante mutação, logo, a crítica mais preciosa é a que se faz à luz da sua própria época. Que analisa, avalia e explica a arte em relação ao nosso tempo e constrói o conhecimento para nosso entendimento.

A crítica é importante para balizar o entendimento da arte ou, pelo menos, para nos mostrar a importância da Arte no contexto social na medida em que ela pode refletir as mudanças de atitude, de proposições em contraponto com as mudanças sociais.
De modo geral, deve-se afastar da crítica mal intencionada, depreciativa já que os parâmetros para julgamento estão na própria obra e no contexto cultural em que ela existe e não no gosto ou no interesse de um crítico em particular. artista, conjunto de obras, Deve-se afastar também da crítica dirigida, conduzida para um determinado artista, colecionador ou marchand.
Não há verdade absoluta ou exclusividade de julgamento ou do próprio pensamento crítico. É necessário que o exercício crítico seja livre e isento de influências e de interesses pessoais. Do mesmo modo que a expressão artística é impregnada de valores culturais, crenças e tendências, o texto crítico também estará contaminado pelo um olhar da época, por mais criterioso que seja o crítico. 
É de se esperar que os críticos sejam oriundos do meio em que exercem sua crítica, entretanto, não é incomum que, indivíduos originários de áreas correlatas ou mesmo de áreas completamente diferentes das da arte, exerçam a crítica de arte. 

O risco é que pessoas de diferentes áreas ao se dedicarem ao pensamento crítico, não o fazem com critérios adequados, portanto, suas críticas tendem a ser superficiais ou desfocadas.
Para se fazer crítica conseqüente, a base de tudo é a informação. Há que se conhecer as diferentes teorias da arte, os diferentes artistas de uma dada época sobre a qual se debruça. Não é possível pretender um julgamento adequado sem ter o conhecimento adequado e um domínio de causa pertinente.
É o que penso. Agradeço a leitura e o compartilhamento. 

REFLEXÕES - Obra de Arte ou Ocorrência Estética?

"Em Conserva". proposição conceitual, Isaac, 2019



Durante muito tempo, no campo da Arte Visual, o conceito de Obra de Arte esteve vinculado ao objeto físico, materializado e acabado num suporte bidimensional ou tridimensional. A apropriação estética, por parte do público, se dava diante da obra por meio de apreciação, em geral, passiva.
Cabe também esclarecer que Estético ou Estética não é sinônimo de Forma ou apenas Plástico ou, pior, Cosmético, tampouco qualquer outra interpretação insólita deste termo. Estética, a partir de Alexander Gotlieb Baumgarten, em 1750, passou a ser entendida como um campo de abordagem e conhecimento da Arte. Embora tenha surgido como um ramo da filosofia, passou a se dedicar aos estudos dos princípios e procedimentos poéticos da criação artística.
O termo Estético é um Substantivo, portanto se aplica a um campo de estudo, à essência da Arte e não um Adjetivo, que se usa para classificar ou distinguir a aparência de algo interessante, bonito ou agradável como  se pudesse por ou retirar a "esteticidade" das coisas... No senso comum acredita-se que transformar algo feio em bonito é torná-lo "estético"!

Portanto, entendemos Estética como uma Constante, uma conduta consciente e conceitual que se refere aos procedimentos que motivam e amparam a criação artística, independente das variações/variáveis poéticas ou proposições adotadas pelos criadores. Portanto, a essência da Arte e não algo opcional ou eventual que pode ou não participar da criação. Estética é uma condição sine qua non para a existência de uma Obra de Arte!

O advento da Modernidade,  a partir de fins do século XIX, possibilitou o surgimento de novos procedimentos artísticos e, consequentemente, novas proposições estéticas. Os modos de fazer, instaurar, de produzir Arte mudaram, como também mudaram os modos de entendê-la e apreciá-la.
Se antes a Obra de Arte era uma coisa na qual residia e à qual pertencia a função estética na medida em que as coisas podiam assumir ou simplesmente adotar uma função estética de acordo com seu autor ou sua proposição "desmaterializando-a", com isto instaurou-se um dos grandes problemas para as teorias da arte assim, tanto os críticos quanto os estetas se mobilizaram para entender e clarear este novo campo de procedimento cujas manifestações não seguiam mais os padrões ou condições anteriores: nem sempre podiam ser entendidas tradicionalmente como "Obras" mas... como Ocorrências Estéticas!

Durante todo o século XX, a destituição do objeto enquanto aparato e residência dos valores artísticos provocou um novo problema: como identificar o que chamávamos Obras de Arte? Será que a não materialidade também admite algum tipo de nomeação?

Pode-se dizer que uma das tendências que deram origem à Arte não Objetual foi a do Dadaísmo: um conjunto de procedimentos adotados por um grupo escritores, intelectuais e artistas em 1916, em Zurique na Suíça durante a Primeira Guerra Mundial, que se tornou um dos movimentos mais radicais do século XX. As proposições Dadaístas valoravam muito mais as idéias e menos os Objetos que podiam servir para sua mediação, assim os conceitos passam a ser mais importantes do que os objetos e as obras decorriam das proposições e não das poéticas ou das técnicas tradicionais.
Tais obras resultavam de montagens, apropriações, colagens, construções, intervenções, instalações, instaurações e performances nas quais a questão de ser ou não um objeto era circunstancial e não um fim, em si.
Grande parte do que faziam chamaram de Anti-Arte já que, por princípio, se negavam a praticar o que se entendia convencionalmente por Arte naquele momento, consequentemente, assumiram/adotaram comportamentos sui generis, cuja prática criativa foi nomeada de Dadaísmo: um processo de criação livre, especulativo, inventivo e, principalmente, conceitual.  Uma atitude que rompia, inclusive com a Modernidade, ou seja, a provocação de um pensamento "Trans-moderno"...
É necessário ponderar que ao prescindirem da objetualidade não implicou necessariamente em prescindir da esteticidade. O que acabaram fazendo foi instaurar novos procedimentos, novos modos de configurar o que se poderia chamar ainda de Obras de Arte, assim  não as anularam, mas estabeleceram novos procedimentos e proposições para realizá-las. Pode-se dizer que "o tiro saiu pela culatra" ou que "o feitiço virou contra o feiticeiro", pois tudo o que des-fizeram/fizeram serviu de base e amparo para as pesquisas em Arte que surgiram a partir da Modernidade e que embasaram a Pós-Modernidade e até hoje, dialogam com a contemporaneidade.

As Performances, Instalações, Intervenções que os Dadaístas faziam promoviam experiências estéticas em situação, ativa e interativa gerando  novos modos de apreciação e fruição estética.
As novas manifestações são ocorrências que não conservam os procedimentos tradicionais, logo, exigem novas abordagens para seu entendimento e apreciação.
Chamo tais manifestações de "Ocorrências" para facilitar a distinção das anteriores. Atribuir uma função estética a um objeto "não artístico" exige do apreciador uma reflexão de caráter estético e conceitual ativo. O mesmo se pode dizer a respeito da apreciação de instalações e performances, tais manifestações passam a reduzir ou eliminar a passividade do espectador, eles precisam se posicionam, deslocar, interagir com as proposições, evocar vivências, experiências e conhecimentos, logo, ao se integrarem aos processos e procedimentos artísticos são elevados ao estado de co-autores e, mesmo que não tenham o domínio pleno do que vêem ou sente, dialogam e incorporam conceitos e valores estéticos. Neste sentido a Arte Contemporânea é interativa e mais integrada à vida do que a Arte Tradicional.

A mudança de paradigmas estéticos que ocorreu desde a Modernidade provocou também mudanças  conscientes juntos aos apreciadores e estudiosos, assim como também no Sistema de Arte, fazendo com que os marchands, colecionadores e instituições relacionadas à Arte revissem suas posturas e crenças.

Este olhar que chamei antes de Trans-Moderno, implica na consciência de que a Modernidade, em meados do século XX, já vinha cumprindo sua vocação e já revelava um certo esgotamento e que o Dadaísmo seria uma injeção de ânimo capaz de transformar o passado recene em futuro...
Portanto se torna também necessário readequar o pensamento sobre Arte de tal modo que se encontre,  além dos novos modos de dizer, novos modos de pensar, discutir e apreciar as manifestações contemporâneas sem contaminá-las com preconceitos ou recorrência aos olhares anteriores. Neste o conceito de Obra de Arte Visual que implicava em manifestações, quase sempre objetuais, agora admitem existirem como "Ocorrências Estéticas" mesmo que, eventualmente, surjam por meio de objetos.

É óbvio que a questão da nomenclatura não é o aspecto essencial desta análise, a questão é mais metodológica do que de identificação, pois o que importa é como olhamos o que olhamos.
Antes a existência o objeto era uma prova cabal da existência Artística, Walter Benjamin, já declarara que a reprodução de uma Obra de Arte provocava a perda de sua Aura. Esta "Aura" seria, supostamente sua alma, ou seja algo inerente e decorrente de sua individualidade, originalidade e unidade que seria destruída ou, pelo menos, amenizada por meio das reproduções difundidas sobre ela que tiraria sua "originalidade", no fundo, o que nos tiraria de fato seria a surpresa diante de algo que nunca tínhamos visto... meio piegas ou lírico, mas pouco relevante. O que importa é entendermos que sua essência, sua artisticidade ou esteticidade, não se perde, se aprofunda!

Tal aprofundamento implica em rever as questões anteriores e admitir novas estratégias de criação e apreciação. Quando as obras tinham corpos, eram visíveis, transportáveis, colecionáveis, comercializáveis e até “museologizáveis” era fácil identificá-las, avaliá-las, valorá-las, mas ao perdê-los ou recria-los, reordena-los ressignificando os modos de ser da Arte Visual, como seriam as novas relações com elas?

Se as obras tradicionais recorriam aos temas convencionais e corriqueiros como os mitológicos, religiosos, históricos ou alegóricos para viabilizarem seus trabalhos por meio de narrativas visuais, descrições explícitas e figurações pontuais obtidas da literatura já consagrada anteriormente, como lidar com este novo tempo, com estas novas possibilidades?

A quebra da visualidade retiniana, reprodutiva, mimética e interpretativa das obras anteriores é reordenada pela ressignificação de valores estéticos que, em boa parte, são amparados em qualidades conceituais, afetivas, fenomênicas e propositivas. As qualidades estéticas, sensórias e materiais são ordenadas para construir novos sentidos e significações substituindo, em parte, as descrições literárias que amparavam a Arte Visual Clássica, Acadêmica e Tradicional. Por meio das qualidades que amparam os processos criativos e pragmáticos das poéticas contemporâneas é possível analisar e compreender que uma Obra de Arte (ou Ocorrência Estética) atual recorre,  imita ou dialoga com o visível ou invisível é um "Estado Estético".

Uma obra não é mais um ponto de chegada, mas um ponto de partida. As análises, reflexões que uma obra instiga, provoca é um diálogo muito mais importantes do que verificar se sua imagem ou descrição corresponde ao tema eleito pelo gosto tradicional.
Os sentidos, compreensão, leitura e interpretação não se dão mais na literacidade ou literalidade demonstrada pela visualidade, mas no diálogo entre a proposição artística mediante sua estrutura, sua configuração, no que está além de sua aparência formal e reside em sua essência conceitual, em sua esteticidade...

Agradeço a leitura e compartilhamento. Obrigado.

REFLEXÕES - Apagamento e Resistência na Arte Visual

A Arte surge espontânea e vernacularmente no contexto da humanidade lá na pré-história. 
Digo espontaneamente por não depender de qualquer imposição ou ingerência de ordem social ou material e vernacular por surgir das condições e meios disponíveis ao seu redor. 

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Bisões pintados na pré-história, na Caverna de Altamira, Espanha.
Pode-se dizer também que o surgimento da Arte decorreu de atos de criação e de esperança. De criação por evocar os modos, meios e processos do fazer que exigiram capacidades cognitivas e psicomotoras para realizá-la e, de esperança, por constituir imagens de caráter estético/simbólicas, formais e rituais que a projetaram para o amanhã.

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Pinturas rupestres na Serra da Capivara, no Piauí, realizadas entre 17.000 e 25.000 anos atrás.                                                                                                               
Não demorou muito para que as grandes ondas civilizatórias da antiguidade percebessem o potencial catalizador das imagens e passassem a instrumentalizá-las para exercer o domínio sobre o outro. Desde o Neolítico, não se pode ignorar a instrumentalização da Arte em prol e benefício dos sistemas de dominação que vão se instaurando pouco a pouco. Basta recolher alguns exemplos de manifestações daquela época para entendermos isso.

Detalhe da Paleta de Narmer, rei unificador do Egito, na qual são mostrados, à direita, os inimigos decapitados.
As grandes civilizações passam a recorrer aos fazeres artísticos, especialmente visuais, em benefício da propagação e manutenção de suas ideologias e valores instaurados, na maioria das vezes, por meio da força e do poder. As imagens instituídas por eles revelam atos e feitos de líderes guerreiros por meio de narrativas ilustradas de combates e conquistas expostas nos muros e paredes de palácios, templos, túmulos e outros monumentos edificados para explicitação e imposição de seu poder e glória.

Cena de combate entre Romanos e Dácios, na Coluna de Trajano em Roma.
Pode-se dizer que, a partir desse período, promove-se o Apagamento da condição anterior da Arte como um meio de expressão natural, volitivo e espontâneo substituindo-o por um processo de expansão de valores hegemônicos e impositivos ligado diretamente à dominação.

Nesse sentido a ideia de Apagamento corresponde à condição social em que o poder instituído atua no intuito de fazer tábula rasa de valores, identidade de grupos, etnias e nações promovendo o Apagamento Cultural identitário, com o fim de reduzir os anseios de autonomia e liberdade dos dominados impondo-lhes novos valores pela propaganda e/ou pelo medo e com isso, exercer com mais eficiência seu domínio, a centralização e acúmulo de poder.

Percebe-se também o exercício desta estratégia quando se olha para a prática colonialista de apropriação de bens materiais e civilizatórios de grupos étnicos ou nações, travestindo tal prática de “Proteção” por meio de Expedições Arqueológicas e/ou Históricas, destinadas a identificar, recolher e se aproprias de obras e demais produtos culturais como forma subliminar de dominação. Por meio da submissão do patrimônio imaterial aos acervos de suas maiores instituições museológicas toma, simbolicamente, a consciência do outro.
Basta observar o acervo de boa parte dos Museus de História Natural ou de Arte do mundo ocidental.

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Galeria Egípcia, Museu do Louvre, Paris.

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Museu Britânico, Londres, coleção de Arte Asiática.
Olhando o percurso da Arte, pode-se dizer que a produção artística cumpriu sua função social muito mais próxima do poder do que da expressão de sua própria identidade.
Até o século XIX, o gosto acadêmico instaurado e defendido pelo poder da nobreza, igreja e da burguesia tornou-se um padrão hegemônico amparado na tradição clássica acadêmica dominando a produção artística. Afastar-se dele era uma sentença de morte ou ostracismo social e econômico. Ao contrário, manter-se com ela era uma garantia de sobrevivência, sucesso e distinção, um modo de afastar-se do Apagamento. 

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A Coroação de Napoleão como Imperador da França, realizada por Jacques-Louis David, em 1807, representa o gosto da nobreza e burguesia do século XIX, representado pelo Neoclassicismo.
Mas isso não duraria para sempre, as primeiras tentativas de resgate de sua autonomia expressiva e de sua individualidade passam a ocorrer com mais vigor e efetividade com o advento da Modernidade em fins do século XIX.
A atitude conservadora dos defensores da Arte tradicional passa a ser a de detratar e desqualificar os artistas inovadores que, segundo eles, só eram capazes de obter uma mera “Impressão” do sol nascente, agir como “Feras” ou praticar “Bizarrias Cúbicas”, nomeando assim o que seriam os primeiros movimentos Modernos: Impressionismo, o Fauvismo e o Cubismo. Assim os críticos Louis Leroy e Louis Vauxcelles atuavam em defesa e em reforço da visão hegemônica no intuito de Apagar, extirpar da sociedade aqueles que insurgiam contra o status quo dominante.

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Impressões sobre o nascer do Sol, Claude Monet, 1872.

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Henri Matisse, Quarto Vermelho, 1908.

Violin and Pipe, 'Le Quotidien', 1913 - Georges Braque
Georges Braque, O cotidiano, 1913.

Por outro lado, por convicção ou por opção, a Arte chamada de Vanguarda investe e aprofunda suas proposições, provocações e inovações desafiando o gosto reinante. Só bem mais que tais transformações surtiriam efeito. O reconhecimento de suas obras, da capacidade criativa e transformadora destas novas proposições e poéticas só ocorre depois que se entende a Arte como um Campo de Conhecimento Expressão Propositivo e não apenas como um recurso ornamental e decorativo.

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Marcel Duchamp com "A fonte" e "Roda de bicicleta", criador do Ready Made. Dadaísta precursor da Arte Conceitual.

Mesmo assim, até hoje este modo livre de fazer Arte sofre agressões. Recebeu a alcunha de “degenerada”, justificando sua expulsão das galerias e instituições oficiais na Alemanha pelos Nazistas e na Rússia pelos Socialistas o que mostra a dificuldade de manter a liberdade de expressão.

Recentemente, a mostra: Queermuseu - cartografias da diferença na arte brasileira, que reunia obras de 85 artistas como Volpi e Portinari, entre outros, após críticas de movimentos religiosos e do Movimento Brasil Livre (MBL), foi suspensa na galeria em que estava sendo realizada e não pode ser instalada em outras como originariamente previsto.


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Fato semelhante ocorreu no MARCO - Museu de Arte Contemporânea de Campo Grande, MS, por atitude do Delegado da Delegacia Especializada de Proteção a Criança e ao Adolescente que apreendeu um dos quadros da artista mineira Alessandra Cunha Ropre por supor uma pretensa apologia à pedofilia... Estes são fatos que tipificam tentativas de Apagamento hoje em dia.

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Obra de Ropre "Presa" do MARCO em Campo Grande, MS.

Por outro lado, o afastamento da Arte de suas funções pragmáticas, ao contrário de apagar sua presença na sociedade, promove a intensificação por meio de novos processos poéticos, estéticos e investigativos. Pode-se dizer que em resposta às tentativas de desarticulação e Apagamento a consolidou como campo de atuação reconhecendo-a como autônoma e propositiva ampliando os estudos e pesquisas realizadas sobre ela e por meio dela.

A partir do Modernismo a Arte passa a explorar novos processos e proposições estéticas dando vasão às tendências conceituais. A partir de então instaura sua presença como forma de investigação e constitui um campo conhecimento específico que antes não era visível tampouco respeitado.

Na medida em que o aprofundamento da Arte na investigação expressiva lhe traz mais autonomia, personalidade e criatividade também a afasta da classe dominante que, por não conseguir mantê-la sob seu domínio, passa a negá-la, ou seja, tenta apaga-la.
No entanto, não se pode ignorar também que ao mesmo tempo em que havia uma ruptura com o modelo ou padrão de gosto anterior, as vanguardas são sendo adotadas por novos públicos: já que não é possível vencê-la, alia-se a ela.

A Obra de Vincent Van Gogh, A Arlesiana, Madame Ginoux, obteve 40,3 milhões de dólares em leilão da Crhistie em NY.
A nova geração burguesa, que surge a partir da industrialização, instaura o capitalismo predatório e consumista que tem pouco apreço e nenhum compromisso com a tradição e se torna a principal destinatária do espólio da Arte Moderna e investidora da Arte Pós-moderna, cuja preferência resvala e dialoga, quase sempre, com a Indústria Cultural e dialoga com cifras extremamente altas transformando-as em verdadeiras âncoras financeiras prontas a serem renegociadas por valores cada vez mais elevados.

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Andy Wahrol, Campbell's Soup, 1962.

Para esta geração a Arte e os artistas não são mais valorizados pelas suas proposições culturais, estéticas ou conceituais e sim pela sua capacidade de inserção no sistema de consumo regido pelas grandes galerias e casas de leilões que passam a especular com as obras de arte transformando-as em ativos financeiros.

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Rabbit, de Jeff Koons, vendida por mai de 90 milhões de dólares.

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Damien Hirst, "Pelo Amor de Deus", de 2007, caveira incrustrada com mais de 6.000 diamantes, vendida por mais de 100 milhões de dólares para um consórcio de investidores. 

As Obras de Arte, antes negadas, desqualificadas passam a serem leiloadas por valores astronômicos. Seria, quem sabe, o reconhecimento tardio de sua importância? Não, é apenas mais uma estratégia de neutralização ou apagamento menos agressivo, mas igualmente eficiente. Agora, ao invés de confrontá-las parece ser mais eficiente transformá-las em bens de consumo, em produtos mercantis, numa espécie de commoditie e, deste modo, são destituídas de seus valores estéticos e culturais, de suas origens, raízes antropológicas, étnicas ou sociais.

Recolhendo-as aos acervos particulares ou institucionais elas são afastadas de sua identidade, de sua função social e do público. Se antes a apropriação da Arte era exercida pelo poder para usá-la como instrumento de dominação, hoje ele se apropria dela para neutralizá-la, reduzir ou anular sua capacidade de reflexão, contestação e libertação tornando-a refém demonstrando o poder do mercado sobre elas.
Basta observar que, mesmo alguns dos mais radicais e inconformados acabam sendo cooptados pelo processo mercantil.

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Uma obra de Bansky, na Sotheby's, é fragmentada durante o fechamento do leilão diante do público quando atingia o valor de 1,18 melhores de euros, mesmo assim o comprador (anônimo), manteve a aquisição.
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Cranio, grafiteiro diante de uma de suas obras em muro urbano.
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Exposição MayDay de Cranio em galeria paulista, outside/inside...

Isto posto, resta explicitar o lado da Arte, o da Resistência.

Resistênciase refere à reação e enfrentamento contra as tentativas contínuas de esvaziamento promovidas diuturnamente contra ela. Tais tentativas ocorrem tanto no ambiente da sociedade como um todo e também no contexto governamental pela falta ou ineficiência de políticas públicas destinadas ao amparar sua produção ou ensino.

Penso que o fato de não reconhecer ou considerar a Arte e outros campos das chamadas ciências humanas ou sociais com o mesmo valor que se dá às ciências naturais ou exatas é um dos fatores que leva ao seu Apagamento. A lógica do capitalismo é a de valorizar tudo o que seja passível de se transformar em produto e consumo e anular tudo o que não seja transmutado em dinheiro ou poder. Uma estratégia eficiente tem sido a de reduzir a capacidade crítica por meio da inanição da Educação Pública. O que se mostra por meio da construção de um estado de instabilidade contra os profissionais para que permaneçam inseguros, minando sua confiança, levando-os ao desânimo reduzindo sua Resistência.
Basta observar as condições precárias para cumprir as exigências curriculares, pedagógicas em instituições cujas estruturas físicas e materiais não atendem as necessidades básicas e suas especificidades resultando em indicadores educacionais desfavoráveis. Em contrapartida as instituições privadas avançam desmesuradamente.

Tal situação tem motivado a mobilização de seus profissionais em torno de organizações de classe que lutam para estabelecer diálogos com a sociedade e o governo em busca de soluções adequadas para seu ensino.
Grande parte desta resistência é caracterizada pela ação destes profissionais que, independe de ações governamentais, buscam sua qualificação, constroem processos e pedagogias destinadas a suprir ou contornar as adversidades por meio da conscientização, de estratégias proativas e alternativas permanentemente reveladas através das proposições, experiências, metodologias, processos e procedimentos, especialmente no campo da Arte e do seu Ensino.

Este é um dos pontos de Resistência que se mostra, não pelo pessimismo e enfraquecimento das bases, mas pelo otimismo e esforço compartilhado pela produção de conhecimento que subvenciona e reforça o saber nesta área de ensino, independente da ausência de iniciativas ou políticas públicas. Assim realimentam e reforçam a crença de que as coisas podem mudar. Parte, não menos importante da sobrevivênciaa este apagamento, corresponde à presença do ensino emsobreArte que ainda existe nas Universidades e a partir delas.

Neste nível é que se realiza a formação dos Agentes de Mudança aqui identificados como os professores e profissionais em Arte que exercem suas atividades no ambiente social por meio do ensino, da pesquisa e também nos serviços nas instituições de promoção, manutenção e difusão artística.

Resistência é a tônica que sempre marcou a presença da Arte na sociedade e, queiramos ou não, permearam e continuarão permeando nosso campo de Ensino e produção, especialmente em tempos de exceção.

Agradeço a leitura e o compartilhamento, obrigado. 

MEMÓRIA – Projeto Vênus de Milo.

Memória, enquanto tema para reflexão, recorre às obras ou séries que realizei em outros tempos...
Refere-se às poéticas em processo ou percurso. Momentos em que certas ideias, conceitos e proposições assumiram estágios ou manifestações passíveis de diálogos, independente de terem sido mostrados ou não, cujos processos resultaram em proposições às quais é possível recorrer para rever, retomar ou simplesmente, lembrar... memória é isto!

Quem é Vênus de Milo? 

Uma escultura de 2,02 cm de altura, supostamente realizada na Grécia antiga, em homenagem à deusa Afrodite, provavelmente no século III a.C., cuja autoria é atribuída ao escultor Praxíteles. Foi encontrada em 1820, próxima à cidade de Milo, daí seu nome. Faz parte do acervo do Louvre desde 1821, é uma das imagens mais conhecidas do mundo. Desde então tem sido reproduzida em vários materiais e tamanhos com fins ilustrativos, decorativos e comerciais.





Um dia, ao passar casualmente numa loja de objetos decorativos, vi pequenas reproduções em gesso da escultura da Vênus de Milo com aproximadamente uns 30cm. Me senti incomodado com aquela situação insólita: um deslocamento cultural gratuito, sem qualquer referência à origem ou características de sua origem. É um hábito comum da chamada Indústria Cultural não medir esforços para transformar manifestações humanas dignas da história, da cultura de vários lugares e tempos em objetos sem sentido, destinados apenas a encimar móveis sem qualquer referência, pertencimento ou identidade. 

Ao mesmo tempo me senti compelido a dialogar com esta situação e o caminho que adotei foi o de trabalhar com o conceito de deslocamento e ruptura cultural. Adquiri três daquelas reproduções com o propósito de submetê-las a uma recriação conceitual que Batizei de Projeto Vênus uma das proposições que realizei na década de 1980.




Minha abordagem partiu da proposição de uma “estética da mutilação”, o ponto de partida e conceito para desenvolver o processo fazendo referência direta às mutilações sofridas pela imagem original, reveladas pela falta dos braços e marcas de cortes e impactos presentes no corpo da escultura.



É comum que a estatuária antiga apresente mutilações decorrentes de depredações e descuidos que sofreram ao longo do tempo. O curioso é que tais mutilações a colocam à margem do conceito grego de beleza ideal. Explico: a Grécia clássica representava o corpo humano segundo forma e aparência idealizada, como um modelo, um cânone. Assim que a Arte grega clássica passou a ser lida pelo processo de de formação artística das Academias tradicionais, especialmente, as de Belas Artes. 

Boa parte do aprendizado nestas academias se baseava na cópia de modelos, em geral de obras de origem greco-romanas. A questão é que, muitas obras apresentavam mutilações e eram reproduzidas assim mesmo, logo, muitos artistas egressos dessas academias mantinham tais "defeitos" como "qualidades". Por um lado era, de fato um defeito, decorrente de acidentes que tais imagens sofreram, parte delas traziam mutilações e os estudantes, como bons copistas, as reproduziam na "íntegra", por outro lado, narrar tais defeitos demonstrava a habilidade do artista que as reproduzia. Acredito ter sido assim que o comportamento de criar figuras mutiladas de corpos humanos se tornou um "estilo" nas representações figurativas da Arte tradicional, um acidente de percurso... 


Percebe-se que tais mutilações não foram criadas com fins expressivos, mas simplesmente para imitar, torná-las mais semelhantes às obras clássicas com a pretensão de impor a elas um “valor estético” histórico, mesmo que artificial. Este mau hábito passa a caracterizar boa parte das esculturas produzidas com fins ornamentais e decorativos encontradas nas melhores "lojas do ramo"...

A partir destas reflexões defini que a Mutilação seria o tema e conceito da proposição, assim, estabeleci o seguinte procedimento: cada uma das três peças seria seccionada em partes desiguais a partir de cortes em ângulos variados na sua longitude criando pequenos blocos irregulares. Mantive as bases intactas e em cada uma delas instalei uma haste metálica para que funcionasse como eixo onde seriam remontadas as peças obtidas da mutilação, intercambiando-as.







Cada fração resultante dos cortes foi perfurada longitudinalmente. 
Esta perfuração teve como finalidade possibilitar a remontagem das figuras destituindo-as da aparência e formato originais. Para aumentar a diferença entre as peças, cada uma das esculturas recebeu uma cor primária: Azul, Amarelo e Vermelho. Assim, as pessoas poderiam manipular tais peças remontando-as do modo que lhes conviesse, criando assim, novas configurações a partir de módulos semelhantes.  




















Portanto, a mutilação, ao contrário de ser um mal se torna um processo, um jogo, estético-interativo no qual os diferentes resultados ampliavam seu sentido e significação gerando novos estágios de compreensão ao mesmo tempo em que suprimia, em parte, o caráter kitsch das reproduções originais, aproximando-as das obras contemporâneas conceitualistas.




Procurei documentar fotograficamente todo o processo em suas diferentes etapas, nem todas as imagens foram recuperadas, mas as que restaram dão uma ideia desta proposição.






Observem, reflitam e compartilhem, agradeço.

REFLEXÕES - Arte é mercadoria?


Talvez você já tenha se perguntado se Arte é mercadoria, se não, vamos pensar um pouco à respeito...

Desenho à carvão e tinta vinílica, Isaac
O que chamamos Arte descende de um percurso histórico que começou nos primeiros tempos da humanidade e dura até hoje. Embora seja uma das atividades humanas mais antigas não corresponde necessariamente à sua aceitação incondicional e integral. Suas funções e características mudaram em relação ao seu tempo e seu lugar. O que se entende por Arte numa época não é o que se entende por Arte em outra e mesmo, na mesma época, são vários os modos que as manifestações artísticas assumem. A Arte está presente na vida humana e em todas as civilizações e culturas desde sempre...

Estar presente e existir não significa ser essencial, logo, os modos e meios pelos quais a sociedade a instaura, cria, usa e abusa também mostram diferentes condutas e comportamentos que nos levam a refletir também sobre sua importância econômica e esta é a pretensão desse texto. O foco principal é a Arte Visual, já que minha formação e atividades profissionais se organizam neste campo e tem sido o principal tema deste espaço virtual. Reforço que meu entendimento compreende a Arte como um campo de conhecimento e, como tal, implica em abordá-lo por meio de análises que contemplem sua presença tanto como um fazer quanto um pensar, ou seja, por meio de comportamentos tanto pragmáticos quanto estéticos.

Nos primeiros tempos a Arte Visual parecia estar vinculada aos rituais, à magia e às pretensões simbólicas do ser humano. Na antiguidade vinculada às civilizações, ao poder, aos interesses e metas dos grandes impérios e nações. Na Idade Média e Idade Moderna, dependida ainda da religião, da nobreza e depois da burguesia, o que também continuou acontecendo até o século XIX. A autonomia da Arte só começa a ser conquistada a partir da Idade Contemporânea, no século XIX, com o advento da Modernidade ou Modernismo, quando os artistas passam a confrontar a tradição clássica acadêmica.

A meu ver, Economia diz respeito aos meios de apropriação, extração, transformação, produção e distribuição de bens e serviços destinados à vida, uso e ao consumo humano. Esta definição genérica é proposital e quer cobrir as diferentes atividades que contemplam as transformações que ocorreram e ainda ocorrem na sociedade humana desde seus primeiros tempos. Assim a Arte se enquadra nesse contexto e cobre a realização de bens materiais e imateriais. Tanto a partir das intervenções nas paredes das cavernas, a construção de monumentos, sua ornamentação e "ilustração" quanto a produção de Obras de caráter estético e/ou funcionais que fazem parte desse universo.

Neste sentido os primeiros "artistas" foram os seres humanos da pré-história que praticaram as primeiras imagens e que delas não tiraram nada além de esperança e, talvez, prazer. Na antiguidade eram os artesãos que narraram a saga de seus guerreiros e nações, ilustraram os templos, túmulos e palácios, homenagearam deuses e líderes e, na maioria das vezes, trabalhavam para obter apenas seu sustento, seu alimento. No medievo permaneceram fazendo o mesmo, enaltecendo ainda mais a religião, mas se mobilizaram em corporações para defender seu labor e buscar um pouco mais de respeito e organização.
Na Idade Moderna, a partir do Renascimento, passam a ser reconhecidos pelas suas competências intelectuais e estéticas diferenciando-se dos artesãos e se aproximando do status da nobreza. Têm o reconhecimento como um profissional diferenciado o que também lhes possibilita prestar serviços mais especializados e receber melhor por isso. Atende encomendas e se submete aos mecenas e poderosos.

Pode-se dizer que durante a maior parte do tempo em que a Arte Visual esteve presente na saga do desenvolvimento humano, a práxis artística se caracterizou como uma prestação de serviços especializados. Apenas a partir da Idade Contemporânea, iniciada historicamente pela Revolução Francesa em fins do século XVIII, é que começam a surgir as primeiras tentativas de fazer da Arte uma atividade autônoma e pessoal na qual o artista passasse a ser o idealizador e gestor de sua produção onde a pesquisa estética e material contribuiu para o surgimento do Modernismo em fins do século XIX e para o desenvolvimento da Arte Contemporânea a partir do século XX.

Até agora, as preleções realizadas não apontaram, de fato, para a questão motivadora deste texto: A relação da Arte Visual com o Mercado. Como manda o melhor procedimento professoral, adoto uma definição de Mercado: A troca, cessão ou aquisição de bens e serviços por valores, em geral, monetários.

Pode-se dizer que, desde a antiguidade, há um Mercado para a Arte. Objetos como esculturas ou reproduções de ídolos eram mercantilizadas com fins ornamentais ou votivos. Contudo, a prestação de serviços é mais perceptível do que a mercantilização nos primeiros tempos da Arte. Para a identificação completa de um Mercado de Arte é necessário, além da identificação dos agentes criadores, a identificação de agentes mercantis, de comerciantes, mercadores ou, na língua francesa: de Marchands.

Durante muito tempo na história, os próprios artistas eram os agentes negociadores e buscavam eles mesmos seus clientes para a formalização das encomendas quando definiam as obras, suas características temáticas, técnicas, valores, prazos e pagamentos. Isto caracterizava ainda a prestação de serviço e não necessariamente ações mercantis.

Em torno do século XVIII é que o Mercado de Arte passa a existir com mais especificidade. Comerciantes de materiais e produtos artísticos passam a expor em seus estabelecimentos as obras que obtinham de artistas por meio de trocas por material ou em consignação para venda. Ainda não eram galerias, mas já davam conta de um "negócio" especializado.
O advento dos grandes Salões franceses contribuiu para a publicidade dos artistas aumentando o acesso do público às Obras de Arte e possibilitando a ampliação do seu comércio junto à burguesia e a distinção de novas tendências.

Mas é a emancipação da Arte Moderna que possibilita aos artistas investirem em projetos pessoais, isto implica também em buscar novos públicos. É nesta busca que investem os primeiros grandes Marchands do século XX e, com isto, definem as diretrizes do Mercado de Arte.

É necessário entender então uma mudança do campo da prestação de serviços para o campo da realização de obras personalizadas que, ao invés de atender ao gosto do público, atendiam prioritariamente às proposições dos artistas, uma inversão do processo anterior. Com isto surge também a necessidade da especialização desse mercado, pois, não é o gosto do cliente que importa, mas a proposição do autor e, com isto, a necessidade do convencimento, das relações interpessoais, da negociação.

Ai se instaura o chamado Mercado Primário de Obras de Arte: os Marchands representam os artistas e comercializam seus trabalhos em suas Galerias, assim, passam a promover o comércio de Obras de Arte, fazendo com que, a despeito dos artistas e de suas proposições ou idiossincrasias, eles passem a dominar este contexto subordinando os artistas ao seu domínio resultando, hoje em dia, nas Art Fairs, eventos contemporâneos criados pelas galerias para mercantilizar obras de seus acervos ou de seus representados.

Deste mercado primário, surge o Mercado Secundário, campo dominado pelas grandes casas de Leilões que além de supervalorizarem as obras também especulam no mercado financeiro transformando tais obras em ativos financeiros de alta performance. Neste contexto os artistas e as galerias são deixadas de lado, não participam mais desse processo e as Obras de Arte são tratadas como ativos financeiros, commodities, Mercadorias, é o triunfo do Mercado sobre a criação.

O conceito Marxista de mercadoria define algo que pode ser consumido imediatamente para o atendimento de uma necessidade, portanto desaparece com o uso ou, e ai é o ponto que nos interessa, algo que pode se tornar um Capital, algo com valor em si mesmo e sujeito ao acúmulo e à especulação. É nesse sentido que o mundo capitalista entende a Arte Visual: como um bem mercantil, um investimento gerador de lucros.

Isto contradiz a criação artística como um ato estético volitivo pois, a partir do momento em que a obra existe, passa a ser objeto de mercantilização, fazendo do artista refém do sistema de arte instaurado na sociedade capitalista como um gerador de bens.

Contemporaneamente a dicotomia entre estas duas posições: proposição estética versus produto mercantil, deflagra algumas questões de sobrevivência dos próprios artistas que podem ser analisados sob, pelo menos, dois pontos de vista: o do Artista Propositivo e o do Artista Conformado.

Chamo de Artistas Propositivos, aqueles que têm como fim primeiro o desenvolvimento de processos de criação personalizados contidos no universo da Pesquisa em Arte, cujo desdobramento resulta em Obras de Arte, intervenções, instalações, instaurações, performances e ocorrências estéticas que não visam, a priori, fins mercantis, mas sim o Valor estético. Por isso dependem de investimentos, normalmente a fundo perdido, pois não contam com a certeza da mercantilização de suas realizações. Tais investimentos são feitos pelos próprios artistas por meio de recursos próprios, atividades paralelas, coworkings, coletivos artísticos, residências artísticas ou apoio de instituições públicas ou privadas, empresas ou investidores dispostos a subvencionar seus trabalhos incluindo-os no conceito de economia criativa, ideia que vem tomando conta do mundo atual. Neste caso, tendem a não se caracterizar necessariamente como geradores de Mercadorias, mas como criadores dependentes de subvenção que os apoie e abra caminhos e possibilidades para manter sua atividade criativa.

E chamo de Artistas Conformados aqueles que produzem suas obras a partir das tendências em vigor ou do gosto reinante sem muitas preocupações estéticas, mas objetivando as tendências definidas pelo mercado. Estes artistas se apropriam ou são apropriados pelos esquemas mercantis e se tornam celebridades, personalidades de prestígio no mundo Pop, onde valem mais das estratégias de marketing do que as qualidades estéticas. Normalmente são promovidos pelas grandes galerias, pelas grandes casas de leilões transformando seus trabalhos em ativos importantes no mercado financeiro onde o Preço se sobrepõe ao Valor estético. Neste caso, tais produtos podem ser caracterizados como mercadorias e, desse modo interferem no sistema de arte com ações predatórias concentrando muito investimento em poucos atores gerando o desequilíbrio do sistema.

Enfim, ser mercadoria ou não eis uma questão atual...

Agradeço a leitura e compartilhamento, obrigado.

REFLEXÕES - Aliens da “in-consciência”: Não ouço, não falo, não vejo...

Três Negativas! Desenho à carvão e pastel. Isaac.

Ao traçar formas nos desenhos que desenvolvo, nem sempre, tenho uma ideia pré-concebida do que surgirá no processo. Também não me preocupo em criar algo figurativo, em geral, me proponho a trabalhar com imagens abstratas. Nesse caso, quando desenhava, vi surgirem três figurinhas meio “aliens”, imediatamente me lembrei dos três macaquinhos japoneses: Mizaru, Kikazaru e Iwazaru que, nesta sequência, ilustram um provérbio da sabedoria nipônica: não vejo o mal, não ouço o mal e não falo mal. Saru/macaco e Zaru/negação criam o sentido simbólico e salutar desse provérbio assim, completei as imagens lhes acrescentei “Xs” nos supostos ouvidos, boca e olhos para reforçar este sentido.





Detalhe: Não ouço!


Detalhe: Não Falo!



Detalhe: Não vejo!

Para o pensamento ocidental, nem sempre, tais imagens são entendidas pelo seu sentido original, podem ser confundidas com a atitude displicente de ignorar o que não interessa. Pensando nisso peguei o gancho das negativas e tomei outro rumo: o do estado de alienação, assumida ou compulsória, que vem tomado forma ultimamente e desafiando nossa inteligência. Parece haver uma espécie de anestesia intelectual impedindo as pessoas de pensarem, refletirem ou, simplesmente, agirem com bom senso.




Detalhe: Não Ouço!


Uma das questões que me vêm à mente, de imediato, é a intensidade com que o “capitalismo predatório” tem se expandido nas últimas décadas. Tudo deve ser transformado em “commodities”: grãos, minérios, carnes e outros bens produzidos em escala massiva e descontrolada sob a égide da riqueza e do desenvolvimento. Não basta esgotar as jazidas ou a capacidade gerativa da natureza, parece ser preciso fazer dela “terra arrasada” para que ninguém, nunca mais possa usufruir dela. A poluição ambiental promovida pela produção industrial desenfreada já dá mostras de esgotamento e os grandes, ou melhor, pequenos líderes mundiais, continuam defendendo e protegendo este processo. Basta ver a quantidade e lixo depositado no ambiente refletindo exatamente a incapacidade de cuidar da própria casa... o que dirá da casa dos outros... para onde são enviados milhares de contêineres abarrotados de lixo tóxico, contaminado ou só lixo mesmo...




Detalhe: Não Falo!




O sistema político representativo, típico das sociedades livres, antes democráticos, se tornou um meio de manutenção do poder imiscuído das corporações, quadrilhas, milícias e até mesmo políticos que não medem esforços nem dinheiro para dele se apropriar e nele permanecer tornando-nos reféns e ao mesmo tempo vítimas deles.
As grandes empresas mundiais associadas às indústrias do petróleo, de mineração, da química farmacêutica ou de insumos agrícolas e o próprio agronegócio manipulam a produção, distribuição e consumo. Não se pode esquecer a mais rica e promissora delas: a indústria das armas que, quando não investem nos conflitos armados com vistas a derrubada, substituição ou tomada do poder armam seus exércitos para manterem a ordem... 






Detalhe: Não Vejo!

Tudo isso reflete as estratégias cada vez mais intensas e menos dissimuladas de dominação. Para isso devem anestesiar sistematicamente as consciências, seja por meio da neutralização da Educação e do controle das mídias de informação ou da comunicação e da propaganda implícita ou explícita promovendo o poder em benefício dele próprio. Para isto criam falsos problemas ou falácias que justifiquem ações de dominação sobre a população de seu próprio país ou de sua nação sobre outras nações por meio da violência clara e explícita. Assim dominam territórios, meios de produção e desenvolvimento se tornando os senhores da guerra e da paz...
Para tanto são fomentados conflitos em várias partes do globo cujo resultado vemos ao olhar para nações, estados e regiões completamente arrasadas. Sua população expulsa de seus lares, lugares e regiões,  migrantes e refugiados se deslocando em massa e sem rumo impulsionados pelo medo, pelo terror ou simplesmente porque lhes falta ou inexistem condições de amparo social para manterem suas famílias com o mínimo necessário apenas para viver.








As humilhações às quais as pessoas estão submetidas não têm limites: seja pela falta de condições adequadas de sobrevivência e dignidade como trabalho, moradia e saúde, para falar só de questões prioritárias, sobram ainda muitas outras vinculadas à educação, ao respeito à dignidade, à diversidade seja ela de gênero, orientação sexual, etnia, nacionalidade ou qualquer outra diferença que requeira respeito, simplesmente não o recebem. A falta de respeito só aumenta a violência contra a pessoa, contra grupos minoritários, contra tudo que pareça diferente e isso tem alcançado níveis alarmantes dia a dia, basta ver os atentados promovidos contra as minorias mesmo em países em melhores condições econômicas e sociais.


Este é um retrato nu e cru do mundo atual, não é uma denúncia, tampouco alarmismo, basta acompanhar as notícias de instituições de pesquisas ambientais publicadas ao longo dos anos para perceber o tamanho do desastre ambiental e social que vem se desenhando ao longo do tempo. O que aflige é que, em contrapartida, aqueles que tem responsabilidade de representar, cuidar do ambiente e das pessoas por meio de políticas públicas protetivas, agem com escárnio, como Sanzarus reversos: não ouvem bem, não vêem bem e não falam nada que aponte para um tempo ou mundo melhor, mais equânime e respeitoso.


E eu aqui tentando falar de Arte... Que ironia...

Peço que desculpem o desabafo. Em tempos nublados e duvidosos como vivemos até na Arte nos ressentimos dessas mazelas...

Agradeço a leitura e compartilhamento.