REFLEXÕES - Obra de Arte ou Ocorrência Estética?

"Em Conserva". proposição conceitual, Isaac, 2019



Durante muito tempo, no campo da Arte Visual, o conceito de Obra de Arte esteve vinculado ao objeto físico, materializado e acabado num suporte bidimensional ou tridimensional. A apropriação estética, por parte do público, se dava diante da obra por meio de apreciação, em geral, passiva.
Cabe também esclarecer que Estético ou Estética não é sinônimo de Forma ou apenas Plástico ou, pior, Cosmético, tampouco qualquer outra interpretação insólita deste termo. Estética, a partir de Alexander Gotlieb Baumgarten, em 1750, passou a ser entendida como um campo de abordagem e conhecimento da Arte. Embora tenha surgido como um ramo da filosofia, passou a se dedicar aos estudos dos princípios e procedimentos poéticos da criação artística.
O termo Estético é um Substantivo, portanto se aplica a um campo de estudo, à essência da Arte e não um Adjetivo, que se usa para classificar ou distinguir a aparência de algo interessante, bonito ou agradável como  se pudesse por ou retirar a "esteticidade" das coisas... No senso comum acredita-se que transformar algo feio em bonito é torná-lo "estético"!

Portanto, entendemos Estética como uma Constante, uma conduta consciente e conceitual que se refere aos procedimentos que motivam e amparam a criação artística, independente das variações/variáveis poéticas ou proposições adotadas pelos criadores. Portanto, a essência da Arte e não algo opcional ou eventual que pode ou não participar da criação. Estética é uma condição sine qua non para a existência de uma Obra de Arte!

O advento da Modernidade,  a partir de fins do século XIX, possibilitou o surgimento de novos procedimentos artísticos e, consequentemente, novas proposições estéticas. Os modos de fazer, instaurar, de produzir Arte mudaram, como também mudaram os modos de entendê-la e apreciá-la.
Se antes a Obra de Arte era uma coisa na qual residia e à qual pertencia a função estética na medida em que as coisas podiam assumir ou simplesmente adotar uma função estética de acordo com seu autor ou sua proposição "desmaterializando-a", com isto instaurou-se um dos grandes problemas para as teorias da arte assim, tanto os críticos quanto os estetas se mobilizaram para entender e clarear este novo campo de procedimento cujas manifestações não seguiam mais os padrões ou condições anteriores: nem sempre podiam ser entendidas tradicionalmente como "Obras" mas... como Ocorrências Estéticas!

Durante todo o século XX, a destituição do objeto enquanto aparato e residência dos valores artísticos provocou um novo problema: como identificar o que chamávamos Obras de Arte? Será que a não materialidade também admite algum tipo de nomeação?

Pode-se dizer que uma das tendências que deram origem à Arte não Objetual foi a do Dadaísmo: um conjunto de procedimentos adotados por um grupo escritores, intelectuais e artistas em 1916, em Zurique na Suíça durante a Primeira Guerra Mundial, que se tornou um dos movimentos mais radicais do século XX. As proposições Dadaístas valoravam muito mais as idéias e menos os Objetos que podiam servir para sua mediação, assim os conceitos passam a ser mais importantes do que os objetos e as obras decorriam das proposições e não das poéticas ou das técnicas tradicionais.
Tais obras resultavam de montagens, apropriações, colagens, construções, intervenções, instalações, instaurações e performances nas quais a questão de ser ou não um objeto era circunstancial e não um fim, em si.
Grande parte do que faziam chamaram de Anti-Arte já que, por princípio, se negavam a praticar o que se entendia convencionalmente por Arte naquele momento, consequentemente, assumiram/adotaram comportamentos sui generis, cuja prática criativa foi nomeada de Dadaísmo: um processo de criação livre, especulativo, inventivo e, principalmente, conceitual.  Uma atitude que rompia, inclusive com a Modernidade, ou seja, a provocação de um pensamento "Trans-moderno"...
É necessário ponderar que ao prescindirem da objetualidade não implicou necessariamente em prescindir da esteticidade. O que acabaram fazendo foi instaurar novos procedimentos, novos modos de configurar o que se poderia chamar ainda de Obras de Arte, assim  não as anularam, mas estabeleceram novos procedimentos e proposições para realizá-las. Pode-se dizer que "o tiro saiu pela culatra" ou que "o feitiço virou contra o feiticeiro", pois tudo o que des-fizeram/fizeram serviu de base e amparo para as pesquisas em Arte que surgiram a partir da Modernidade e que embasaram a Pós-Modernidade e até hoje, dialogam com a contemporaneidade.

As Performances, Instalações, Intervenções que os Dadaístas faziam promoviam experiências estéticas em situação, ativa e interativa gerando  novos modos de apreciação e fruição estética.
As novas manifestações são ocorrências que não conservam os procedimentos tradicionais, logo, exigem novas abordagens para seu entendimento e apreciação.
Chamo tais manifestações de "Ocorrências" para facilitar a distinção das anteriores. Atribuir uma função estética a um objeto "não artístico" exige do apreciador uma reflexão de caráter estético e conceitual ativo. O mesmo se pode dizer a respeito da apreciação de instalações e performances, tais manifestações passam a reduzir ou eliminar a passividade do espectador, eles precisam se posicionam, deslocar, interagir com as proposições, evocar vivências, experiências e conhecimentos, logo, ao se integrarem aos processos e procedimentos artísticos são elevados ao estado de co-autores e, mesmo que não tenham o domínio pleno do que vêem ou sente, dialogam e incorporam conceitos e valores estéticos. Neste sentido a Arte Contemporânea é interativa e mais integrada à vida do que a Arte Tradicional.

A mudança de paradigmas estéticos que ocorreu desde a Modernidade provocou também mudanças  conscientes juntos aos apreciadores e estudiosos, assim como também no Sistema de Arte, fazendo com que os marchands, colecionadores e instituições relacionadas à Arte revissem suas posturas e crenças.

Este olhar que chamei antes de Trans-Moderno, implica na consciência de que a Modernidade, em meados do século XX, já vinha cumprindo sua vocação e já revelava um certo esgotamento e que o Dadaísmo seria uma injeção de ânimo capaz de transformar o passado recene em futuro...
Portanto se torna também necessário readequar o pensamento sobre Arte de tal modo que se encontre,  além dos novos modos de dizer, novos modos de pensar, discutir e apreciar as manifestações contemporâneas sem contaminá-las com preconceitos ou recorrência aos olhares anteriores. Neste o conceito de Obra de Arte Visual que implicava em manifestações, quase sempre objetuais, agora admitem existirem como "Ocorrências Estéticas" mesmo que, eventualmente, surjam por meio de objetos.

É óbvio que a questão da nomenclatura não é o aspecto essencial desta análise, a questão é mais metodológica do que de identificação, pois o que importa é como olhamos o que olhamos.
Antes a existência o objeto era uma prova cabal da existência Artística, Walter Benjamin, já declarara que a reprodução de uma Obra de Arte provocava a perda de sua Aura. Esta "Aura" seria, supostamente sua alma, ou seja algo inerente e decorrente de sua individualidade, originalidade e unidade que seria destruída ou, pelo menos, amenizada por meio das reproduções difundidas sobre ela que tiraria sua "originalidade", no fundo, o que nos tiraria de fato seria a surpresa diante de algo que nunca tínhamos visto... meio piegas ou lírico, mas pouco relevante. O que importa é entendermos que sua essência, sua artisticidade ou esteticidade, não se perde, se aprofunda!

Tal aprofundamento implica em rever as questões anteriores e admitir novas estratégias de criação e apreciação. Quando as obras tinham corpos, eram visíveis, transportáveis, colecionáveis, comercializáveis e até “museologizáveis” era fácil identificá-las, avaliá-las, valorá-las, mas ao perdê-los ou recria-los, reordena-los ressignificando os modos de ser da Arte Visual, como seriam as novas relações com elas?

Se as obras tradicionais recorriam aos temas convencionais e corriqueiros como os mitológicos, religiosos, históricos ou alegóricos para viabilizarem seus trabalhos por meio de narrativas visuais, descrições explícitas e figurações pontuais obtidas da literatura já consagrada anteriormente, como lidar com este novo tempo, com estas novas possibilidades?

A quebra da visualidade retiniana, reprodutiva, mimética e interpretativa das obras anteriores é reordenada pela ressignificação de valores estéticos que, em boa parte, são amparados em qualidades conceituais, afetivas, fenomênicas e propositivas. As qualidades estéticas, sensórias e materiais são ordenadas para construir novos sentidos e significações substituindo, em parte, as descrições literárias que amparavam a Arte Visual Clássica, Acadêmica e Tradicional. Por meio das qualidades que amparam os processos criativos e pragmáticos das poéticas contemporâneas é possível analisar e compreender que uma Obra de Arte (ou Ocorrência Estética) atual recorre,  imita ou dialoga com o visível ou invisível é um "Estado Estético".

Uma obra não é mais um ponto de chegada, mas um ponto de partida. As análises, reflexões que uma obra instiga, provoca é um diálogo muito mais importantes do que verificar se sua imagem ou descrição corresponde ao tema eleito pelo gosto tradicional.
Os sentidos, compreensão, leitura e interpretação não se dão mais na literacidade ou literalidade demonstrada pela visualidade, mas no diálogo entre a proposição artística mediante sua estrutura, sua configuração, no que está além de sua aparência formal e reside em sua essência conceitual, em sua esteticidade...

Agradeço a leitura e compartilhamento. Obrigado.

3 comentários:

ROSE CANAZZARO - ARTISTA PLÁSTICA, EMBAIXADORA DA PAZ disse...

Parabéns pelo seu blog, já esta em meus favoritos, quero ler com mais tempo e cuidado...Adorei o primeiro artigo!!Abraços!!

Rose Canazzaro

Raphael Alves disse...

Aplicando na fotografia, professor, acho que cabe nessa discussão a foto do falecido José Medeiros: "Fotografia é tudo o que vemos. Porém o que vemos, depende daquilo que somos".
Esse texto cairia como uma luva na disciplina da professora Simonetta Persichetti.
Parabéns, mais uma vez...
Abraços, professor

Anônimo disse...

Oi Isaac, parabéns pelo site! Vc poderia me dar seu email para eu te mandar release de exposições do Gabinete de Arte Raquel Arnaud? Abraços. Márcia.