POÉTICAS - Ligth Graph: diálogo com o campo expandido do desenho




Nestas últimas semanas, fomos instados ao recolhimento compulsório, o isolamento social destinado a prevenir a expansão do vírus COVID-19. A Universidade, as escolas, o comércio e muitos serviços públicos suspenderam suas atividades para evitar a contaminação do inimigo público mundial No.1.

A UFMS, para reduzir os danos de uma suspensão integral das aulas, propôs sua manutenção por meio de plataformas digitais.Obviamente nem todas as disciplinas e nem por todo o tempo isso será possível, mas é uma estratégia viável para o momento. Mais tarde, quando as atividades normalizarem, as questões pendentes serão resolvidas como repor aquelas disciplinas que não puderam ser trabalhadas durante a reclusão e outras questões emergentes.

Nesse caso, embora à distância, continuamos em atividade. Essas atividades incluem a manutenção de nossos projetos acadêmicos com as aulas as pesquisa do melhor modo possível.
Uma de nossas colegas, Constança Lucas, propôs que continuássemos, dentro do grupo de pesquisa que coordena: Pensar o Desenho, realizando atividades e postando sob o título de ISOLAMENTO DESENHADO. Uma boa proposta para que não deixásssemos de interagir e manter o astral em alta.

Mantenho também um projeto de Pesquisa em Arte denominado: Expressão Gráfica e o Campo Expandido do Desenho no qual exploro as questões gerativas do processo desenhante, seus fundamentos, diretrizes e criações. Um dos lugares para divulgação dos resultados e processos desse projeto é justamente esse Blog.

Tenho participado com algumas postagens no Pensar o Desenho e, nessa semana, propus um "quiz" sobre algumas das imagens que publiquei durante esse período no intuito de aumentar um pouco essa interação dentre os participantes perguntando: quem saberia dizer como essa imagem foi realizada?

Algumas pessoas conseguiram identificar o processo, outras quase... Por isso achei que valia a pena levantar alguns aspectos relacionadas ao contexto e ao conceito de Desenho já que, na atualidade ele não é entendido sob uma única ótica ou sob um só conceito. Assim aproveito a dica para abordar um recorte conceitual: O Desenho e sua práxis.

A palavra Desenho é um substantivo que cobre um amplo espectro de opções que vão do grafismo mais simples e elementar, como o rabisco ou garatuja, ao projeto mais complexo e sofisticado e Conceitual. O termo latino Disegno se refere tanto à capacidade psicomotora de realizar imagens como também à capacidade cognitiva de concebê-las, inventá-las e interpretá-las. Designar, indicar, orientar, gerir todas estas são compreensões possíveis neste contexto.


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Não há dúvida de que estas imagens à carvão figurando animais na caverna de Chauvet, na França, realizadas há 30.000 anos, correspondem a uma das ideias que se tem de Desenho.


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Do mesmo modo, não se pode negar que estas incisões em rocha, encontrada na caverna de Blombos, na África do Sul, datadas de uns 70.000 anos, não sejam desenhos.



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Ou essa inscrição rupestre no Costão do Santinho em Florianópolis, Santa Catarina, não seria Desenho?


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As garatujas ou rabiscos desordenados infantís não seriam também modos de desenho?

Durante o Renascimento, especialmente a partir do Trecento, o Desenho passou a ser entendido, reconhecido como recurso autônomo e também adotado como a base para a produção das demais criações artísticas servindo de esboço ou preparação para as demais manifestações como a Pintura, a Escultura e também como subsídio técnico, geométrico ou projetivo para a Arquitetura. Passou a ter uma responsabilidade estrutural ou técnica dentro do campo expressivo ou prático.


Incisão rupestre na Ilha das Aranhas, em Santa Catarina, também pode ser entendido com Desenho. 


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Projeto de reforma da Igreja de Santa Maria Novella por Leon Batista Alberti, no século XV em Florença, o Desenho como projeto e tornado realidade.

O ato de desenhar ou seja, a ação gráfica para realização do Desenho, é exercido  tradicionalmente em superfícies bidimensionais e realizado por meio do contato de algum recurso material seja um instrumento ou ferramenta capaz de deixar marcas e rastros.  Portanto, chama-se Desenho tanto o processo que o realiza quanto o eu dele decorre. As grafias, incisões, traços e linhas resultantes são tidas como imagens ou figuras que podem ou não corresponder ao que se vê no mundo natural ou meio ambiente. 
O Ato Gerador é, em princípio, o Gesto. Para que uma imagem surja originária e artificialmente é preciso criá-la pela mão humana. Conduzir o gesto na tentativa de contornar ou imitar algo é um processo relativamente complexo. Aciona-se tanto a capacidade visual quanto psicomotora. Não é uma tarefa simples, depende de coordenação motora fina. Além disso, deve-se considerar ainda que os materiais, meios e recursos disponíveis são diversos, entretanto, depois da criação de aparelhos óticos capazes de plasmar imagens por meio da luz como uma câmera fotográfica ou videográfica, hoje em dia: digitais isso mudou substancialmente.

Figurar coisas do mundo tem sido uma das funções mais recorrentes das imagens desde seu surgimento na pré-história. Tais figurações ora se comportam como representações, registros, documentário das coisas do mundo mas também sua compreensão como abstrações, rupturas e fuga destas mesmas coisas deste mesmo mundo, isto é invenção, criação, expressão: Arte.


Ao deixar de lado a questão da identidade visual, imitação ou figuração das coisas do mundo que as imagens podem conter, referenciar ou sugerir, é possível destacar as questões de caráter plástico ou seja, aquelas que dizem respeito ao ato configurativo em si. Configurar significa dar forma visível a algo. Ao criar uma imagem constitui-se algo prenhe de sentido cuja significação é passível de ser orientada, obtida ou interpretada a partir daí.


As características ou propriedades plásticas necessárias à configuração de uma imagem decorrem de aspectos materiais instrumentais, técnicos e gestuais sem tocarmos, no momento, em questões de ordem conceitual. Tais aspectos se referem aos rastros, marcas, resíduos decorrentes da interação entre os materiais, instrumentos, ferramentas usados para impor figuras às superfícies, suportes, matérias e ambientes.


O experimentalismo material, estético e conceitual tornou-se um recurso expressivo tanto quanto eram respeitados os processos e procedimentos imitativos para a Arte tradicional. Os elementos plásticos, visuais, operacionais, propositivos, constitutivos, gestuais ocasionais ou casuais passaram a ser considerados como informativos e, consequentemente, estéticos e conceituais dando margem ao surgimento do que se chamou Arte Pós-Moderna.


A maior questão é que com o advento da Modernidade e da Pós-Modernidade, o conceito de Desenho se expandiu de tal maneira que, hoje em dia, é quase impossível delimitar suas fronteiras, se é que existem.



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Talvez tenha sido Richard Long, em 1967, um dos primeiros artistas a pensar o desenho fora da caixinha e propor intervenções ambientais tomando como referênca a linearidade construída, até pelos nossos próprios passos.


Assim, os aspectos visuais decorrentes das qualidades plásticas resultantes das substâncias expressivas constituintes das imagens, fossem materiais ou gestuais, passaram a ser tomados como valores, sentido e significação e não só aparência. Qualidades matéricas como cor, textura e gestuais como marcas, direção e intensidade passaram a ser reconhecidas e conceitualmente lidas como sentido no contexto da Arte atual, Constructos Visuais ou Semióticos, se quisermos dar nome a eles.



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Walter de Maria, em 1977, faz com que os raios desenhem seus percursos no céu com pára-raios plantados no ambiente e os retém fotográficamente para a posteridade...


Portanto a expressão artística não se refere apenas aos valores temáticos, aos assuntos e figuras que criam, inventam ou representam mas também a tudo o que se constitui em imagem, desde os materiais usados para construir as obras, como os seus suportes e ambientes nos quais são configuradas, instauradas ou instaladas e provocam ou promovem a interação entre as pessoas. 


A ampliação dos sentidos é uma das características da Arte atual, interativa e dialógica. Nesse sentido entram todos os recursos possíveis e imagináveis, desde os tradicionais aos contemporâneos e tecnológicos. As fronteiras poéticas se romperam e não é mais tão fácil identificar ou classificar as manifestações artísticas num ou noutro gênero, daí a ideia de Campo Expandido.


Ligth Graph é um nome que adotei nesse texto para um procedimento simples.

O surgimento da fotografia possibilitou que se exercesse o controle sobre a luz, ou seja, tornou possível usar a luz existente ou produzida, como meio de iluminação ou, melhor ainda, de expressão.

Uma das estratégias interessantes é o uso da chamada Ligth Pen, ou seja, uma fonte de luz pontual como uma vela, uma brasa ou uma lanterna para desenhar sobre a superfície sensível da câmera fotográfica criando o que se chamou de Ligth Painting. 


Um dos melhores exemplos dessa estratégia foi quando Gjon Mili a utilizou para fixar a gestualidade Picassiana na construção de desenhos no ar, feitas para uma entrevista para a Revista LIFE, na década de 1950.


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pablo picasso's light drawings from 1949


Antes e depois disso vários artistas recorreram a este processo para criar imagens figurativas ou abstratas. Nada de novo, mas também nada nos impede de usar processos idênticos ou semelhantes para obter resultados interessantes.


Nesse sentido é que trabalhei a partir de tomadas de imagens fotográficas em câmera digital. Ao contrário do Ligth Painting (que é manter o obturador aberto e desenhar com uma fonte luminosa), fiz o contrário, mantive o obturador aberto sobre a iluminação existente no ambiente e usei a câmera como instrumento de desenho. O movimento da câmera é que constrói a grafia. Depois tratei algumas imagens invertendo, retirando cores, intensificando ou limpando, enfim, foi esse processo que usei e mostro aqui:


Foto grafismo produzido a partir da tomada de imagem com obturador aberto a partir de postes de iluminação pública e depois invertendo a cor e transformando em preto e branco.


Processo semelhante ao anterior, sem transformar a imagem em preto e braco, mas mantendo a inversão cromática.


Processo semelhante ao anterior, mantendo a inversão de cor e intensificação cromática.


O mesmo processo da anterior.


Imagem tomada diretamente sobre a iluminação existente e mantendo as características originais.


Processo igual ao anterior, intensificando os valores cromáticos.

Bem, como viram é possível grafar, desenhar, a partir da luz, da câmera, da mão, enfim é possível criar imagens gráficas de diferentes maneiras possíveis.


Uma ideia para usar nesses momentos de confinamento: vá a sua janela, à noite, munido de uma câmera e tente criar seus Ligth Graphs, garanto que será, no mínimo, divertido.


Saúde! Curtam e compartilhem, agradeço.









REFLEXÕES - Quando as coisas dão errado...

Em tempos de vírus vale a pena buscar algo mais suave para desanuviar o espírito e deixar o corpo mais leve.



Muitos devem lembrar dessa imagem que "viralizou", no bom sentido, tempos atrás. A "restauração" realizada numa igreja da Espanha por uma senhora octogenária, resultou em perda total. Por outro lado, a ampla divulgação que o fato teve nas redes sociais deixou a igreja famosa e o acesso ao mural conquistou mais visitantes. Embora se trate de algo sério não se pode negar que tais condutas levam ao contexto do humor, negro ou não, nos proporciona momentos de descontração para curtirmos algo que, na maioria das vezes, tratamos como muito respeito.

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Ecce Hommo, como era, como estava e como ficou.
Pelo bem do patrimônio não convém deixar que pessoas dadivosas e amadoras façam restaurações espontâneas, pois os resultados podem ser terríveis.
O campo da Restauração Artística é um dos mais complexos e mais importantes quando se fala em preservação de Obras de Arte, logo, serviços nessa área devem ficar a cargo de especialistas e não de colaboradores eventuais.

Este caso não foi o primeiro e, lamentavelmente, não será o último, os pretensos restauradores estão de plantão, à espreita e prontos para fazerem uma lambança geral, a "criatividade" desse pessoal não tem limites.

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Outra "restauração": São Jorge a cavalo, em Navarra na Espanha.

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A Espanha parece ser a vítima preferencial de restauradores amadores, esse também foi uma tentativa espontânea de realizar a revitalização de algumas esculturas medievais.

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Três esculturas de madeira do eremitério da cidade de El Rañadoiro, Astúrias, Espanha.
O conjunto das três imagens "restauradas".

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Ainda na Espanha um São José e uma Santa Maria Egípcia colocadas em um santuário de Setefilla, também provocam lamentos:

O tamanho de San José, antes e depois da intervenção.
São José antes e depois recolorido...

A imagem de Santa María Egipciaca antes e depois da restauração.
Santa Maria, banhada e re-vestida...

O Brasil não está isento desses desastres, a imagem de Santa Bárbara, realizada no século XIX, da capela de Santa Cruz da Barra na Fortaleza de Santa Cruz também passou por isso:
A estátua de Santa Bárbara na Capela Santa Cruz da Barra, antes e depois da restauração.  Foto de Milton Teixeira.
Santa Bárbara de Santa Cruz da Barra.
A estátua de Santa Bárbara na Capela Santa Cruz da Barra, antes e depois da restauração.  Foto de Milton Teixeira.
Percebe-se a transformação radical...

Como se percebe ninguém está livre disso, até Buda sofreu um upgradevisual, uma super transformação:

O Anyue Buddha antes e depois da restauração.  Foto de Xu Xin, via Weibo.
Buda numa gruta de Anyue, na China, imagem com mais de 1.000 anos, "restaurada".
Ainda na China, o resultado da reciclagem de um afresco também mostra uma "atualização" das cores:

Um dos antigos afrescos budistas no Templo Yunjie, em Chaoyang, nordeste da China, que agora foi coberto por pinturas de desenhos animados como parte de uma "restauração".  Foto cedida por STR / AFP / Getty Images
Afrescos Budistas em Chaoyang, na China, realizados entre 907-1125, antes e depois.

Talvez uma das mais ridículas tentativas de restauração tenha sido a reconstrução da cabeça do menino Jesus nos braços de Maria na Igreja de Sainte-Anne-des-Pins, em Sudbury, Ontário no Canadá.
Conforme se conta, a cabeça do menino foi decapitada e recolocada várias vezes até que, enfim desapareceu. A substituição foi proposta por uma pessoa da localidade que faria o seviço "de graça", obviamente a cúria concordou imediatamente e o resultado de tal serviço pode ser aqui comprovado:

A tentativa de Heather Wise de restaurar uma estátua de Jesus.  Captura de tela via YouTube, cortesia de Coisas da Net.
Qualquer semelhança com Lisa Simpson é mera coincidência.
Segundo relatos, a cabeça em terracota era apenas temporária enquanto se preparava uma de pedra definitiva, no entanto, a monstruosidade foi parada a tempo. Durante o processo o decapitador arrependido, devolveu a cabeça original e tudo voltou a ser como antes...

Fora a diversão que estas peças mal resolvidas possam provocar, não se deve esquecer que há trabalhos bem sucedidos e que colocam as obras em condições adequadas ou compatíveis com o que propõem. É o caso da pintura de Da Vinci que, durante muito tempo deixou de ser atribuída a ele por conta de restaurações que a alteravam substancialmente e colocaram em dúvida sua autoria.
Mas, depois de várias limpezas a obra voltou ao seu estado original, como se vê na imagem da esquerda, abaixo, inclusive com as rachaduras e ranhuras decorrentes aos danos que sofreu ao longo do tempo. Após esse processo ela foi novamente restaurada, como se vê na imagem da direita e vendida pela Christie´s de NY em 2017 por 430 milhões de dólares.


Antes e Depois da Conservação da Pintura Salvador Mundi
Salvator Mundi, de Leonardo da Vinci, antes e depois da restauração.

Hoje em dia as tecnologias e técnicas de análise, recuperação e restauração de Obras de Arte avançaram muito e é, praticamente, impossível provocar danos às obras submetidas a processos técnicos experientes, acompanhados ou desenvolvidos por especialistas.
As questões de conservação e restauro não se referem apenas às obras do passado, mas também às obras recentes. Muitas obras produzidas a partir do Modernismo são suscetíveis à danos devido às experimentações, proposições eventuais ou transitórias, Isso faz com que sofrem intervenção e interferência de condições ambientais com também a degradação devido à variedade de materiais usados. Muitos artistas trabalham com materiais insólitos, orgânicos, em geral, degradáveis por sua própria natureza. Nesse caso, os restauradores enfrentam problemas de toda ordem: sejam estruturais ou com as matérias com que estas obras foram realizadas. Conservar tais obrar requer domínios que vão da química à física, pois além da tentativa de conservação de materiais originariamente degradáveis, eventualmente elas precisam ser restauradas, o que leva a uma questão completamente nova: repor o material usado originalmente ou deixar que ele siga seu destino e desapareça?

Um exemplo desse tipo de problema ocorreu com uma das obras de Damien Hirst: "A impossibiliadade Físca da Morte na Mente de Algo Vivo de 1991. Encomendada pelo galerista inglês Charles Saatich, pagando por ela 50 mil libras e depois vendida ao investidor americano Steve Cohen.

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A obra realizada na década de 1990, conservada em formol, começou a apresentar sinais de deterioração depois de uns 15 anos. Isso causou extremo desgosto ao colecionador que acionou o artista para resolver a situação, afinal algo que custou 50 mil libras não pode se desmanchar assim.


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Conta a lenda que Hirst se propôs a substituir o tubarão, o que causou também sensação no contexto da Arte, já que a originalidade seria sacrificada em prol do mercantilismo, mas como se trata de Arte Conceitual, admite-se o licenciamento de proposições em detrimento de obras originais.

Enfim, espero que possam sorrir um pouco mais nesses dias tensos, saúde, curtam e compartilhem, conhecimento e diversão podem se juntar... em alguns casos!





REFLEXÃO - Universidade prá que?

Pegando um "gancho": O Curso de Artes Visuais da UFMS inaugurará sua Galeria. Batizada de GAV - Galeria de Artes Visuais, que se propõe a atuar como um ambiente de apoio didático-pedagógico destinado à complementação dos conteúdos ministrados nas diferentes disciplinas de seu projeto pedagógico.

Faço parte do corpo docente da instituição e me orgulho de participar desse momento que representa um ponto positivo em relação aos muitos outros negativos que o ensino superior tem enfrentado. Tanto no que se refere às dificuldades de manter condições de trabalho adequadas, quanto ao enfrentamento da maledicência, de muitos daqueles que elegemos para nos representar que estão empenhados em desqualificar essas instituições que, no Brasil, contam com mais de cem anos de efetivos serviços prestados à sociedade, seja na formação de profissionais para atuar em várias áreas ou no desenvolvimento da pesquisa e do conhecimento em todas os campos e atividades.

O presuposto gerador desse tipo de instituição vem do latim: "Universitas magistrorum et escholarium" que se refere à reunião de mestres e estudantes em busca do conhecimento, ou seja, define o objetivo final desse tipo de formação.
A Univesidade é uma das instituições de conhecimento mais antigas da humanidade, admite-se que entre os séculos V e VIII haviam várias universidades em lugares como a Índia, Tunísia, Cairo, Bagdá, Fez, só mais tarde é que surge a primeira universidade europeia a de Bolonha fundada em 1088.

As Universidades são instituições de Ensino Superior, instituídas constitucionalmente destinadas a preparar profissionais em várias áreas conferindo-lhes título de graduados nas diferente profissões destinadas à sociedade. Suas principais finalidades se destinam ao Ensino, à Pesquisa e à Extensão. Em geral os cursos são reunidos em centros de estudo, institutos ou faculdades regidos localmente por conselhos, colegiados ou departamentos. A administração geral de uma universidade é realizada por uma Reitoria que organiza seus serviços e sistema em diferentes unidades acadêmicas, de pesquisa, ensino e extensão. Têm autonomia administrativa e pedagógica e suas decisões, tanto das unidades mais próximas dos estudantes quanto das mais amplas são realizadas coletivamente por meio de reuniões de departamentos, colegiados e conselhos.

Sem as Universidades não teríamos desenvolvimento social, industrial, tecnológico, agrícola, econômico e cultural e tantos outros. Talvez, sem ela, nem nos sustentaríamos como nação. É fácil para alguém que olha do presente, sem consciência histórica, ignorar o passado ou as vicissitudes que foram superadas para chegar até aqui. É fácil ignorar a construção de um projeto de sustentação de desenvolvimento fundado há séculos no conhecimento. O mais ignorante dos mortais é capaz de perceber que o conhecimento não cai do céu nem é produzido por osmose ou geração espontânea, é fruto da dedicação de gerações e gerações de estudiosos, inventores, pesquisadores e, pasmem, professores...

Nenhuma sociedade se consolida ou se sustenta, tampouco sobrevive sem conhecimento. Basta olhar para as nações, consideradas desenvolvidas, para constatar que boa parte do desenvolvimento se deve aos investimentos nas pesquisas, na consolidação e disseminação do conhecimento. São as instituições dedicadas ao conhecimento que sustentam esse desenvolvimento pois, para colocar em prática uma nova tecnologia, por exemplo, é necessário criá-la, desenvolvê-la, testá-la até o ponto de torná-la disponível para que os demais níveis produtivos dela se apropriem e a transformem em bens ou serviços e disponibilizem para a sociedade.

Ao mesmo tempo não se deve ignorar que a produção de conhecimento não se reduz apenas àqueles que podem ser transformados em bens econômicos, mas também aqueles que desenvolvem valores e consciência social e cultural. Apenas para exemplificar: seria o mesmo que entender que um corpo existisse apenas pela sua estrutura física e fisiológica e que não tivesse consciência, espírito ou alma. Assim perderíamos a humanidade... e também o humanismo.

Em tempo de Vírus as esperanças recaem na ciência, no conhecimento esperando que encontrem soluções rápidas para nos proteger, mesmo que, na maior parte do tempo ela tivesse sido tratada como um simples apendice, um desperdício, algo desnecessário acreditando que a riqueza (material ou espiritual) surja da própria riqueza e não da pesquisa, do conhecimento e, principalmente do ensino, que é o meio mais acessível, mais adequado para que a sociedade exista e se desenvolva.

Agradeço a leitura e compartilhamento. 


EM PROCESSO - Cartogramas e terraplanismo: entre a invenção e o dogma.

A Arte de hoje em dia opera, em boa parte, por meio de Proposições: os artistas buscam referências, problematizações, conceitos e ideias para realizar coisas que podem ser ou conter objetos, coisas e também se configurar como eventos, instalações, intervenções e manifestações que criam meios, sistemas e processos destinados a abrir diálogos com o público e gerar reflexões, análises e críticas em torno e/ou por meio da Arte.
Pensar processos artísticos é manter-se alerta para tudo o que envolve a presença humana no meio social ou natural. O artista é um eterno pesquisador, investigador, descobridor, sempre alerta para os detalhes, as mudanças, variações e variáveis que inundam o contexto vivencial em todos os sentidos.

Dia desses um dos meus colegas de trabalho me presenteou com uma peça de couro, cujo formato me sugeriu a forma de um Mapa. A partir daí passei a refletir sobre a ideia de cartografia e a problematizar o conceito de Cartograma. Em consequência disso e sem querer acabei tocando também no conceito insólito do terraplanismo...

É possível que mapas existam desde os tempos pré-históricos, a questão é que não sobreviveram ao tempo.

“Cartografia no período pré-histórico no mundo antigo”, de Catherine Delano Smith, em Brian Harley e The History of Cartography, Volume One, de David Woodward (Chicago, 1987, pp. 54-101).
Mais tarde, na Babilônia, é encontrado também um mapa impresso numa peça de argila onde se encontram também sua descrição pela escrita cuneiforme.
O primeiro Mapa mundi conhecido parece ser este da Babilônia criado no século VI a.C. 
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Aqui a interpretação do mapa babilônico, o Mundo conforme lhes parecia ou como o conheciam até então.

Sabe-se que a Cartografia é um procedimento representacional eficiente em busca de mostrar com eficiência a posição dos espaços geográficos no globo Recorre à representação dos acidentes geográficos, fronteiras, morfologia e demais dados que contribuem para o reconhecimento geolocal... Contudo, em contraponto a isso, existem também os Cartogramas que, embora remetam à criação de imagens de base cartográfica, não são construídos como um mapa tradicional, portanto, não seguem as convenções nem a construção cartográfica habitual destinada a indicar lugares, características geológicas ou condições globais como os mapas típicos dos estudos geográficos.

Detalhe do "Mapa" de Isidoro de Sevilha, 1040, que mostra um círculo com um T inscrito representando três continentes: a Ásia, a Europa e a África.
Nesse caso, menos do que um mapa, mais parece um cartograma.
Os cartogramas querem mostrar variações e variáveis que podem se referir a outros aspectos que não apenas geográficos mas se apropriam da figuração geográfica para informar dados de outras origens como sociais, humanos, econômicos, ambientais, etc. Atuam por meio de uma espécie de “licença poética” na qual não importa apenas onde estamos no espaço mas quem ou como somos no mundo...

Mapa de 1050, produzido pelo Beato de Liébana, religioso espanhol, orientado a Leste e não ao Norte como é comum. Outro aspecto é que o mapa não se refere a locais geográficos mas ao percurso dos profetas cristãos pelo mundo.

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Mapa dos Saltérios (Londoner Psalterkarte): Um mapa do mundo, com Jerusalém no centro e as raças monstruosas na extremidade, entre 1200 e 1250 dC.
Essas condições "criativas" abrem o horizonte para a expressão artística já que um cartograma não é um mapa referenciado ao que se vê, mas também ao que "prevê", ao que se quer mostrar mesmo que, em parte, seja fruto da criação ou, talvez, da imaginação. Cartogramas alteram a imagem tradicional dos limites, das fronteiras, das cores, das convenções para significar coisas que um mapa convencional não seria capaz de mostrar, aí entra a capacidade criativa do “mapeador” ou do artista.

Tabula Rogeriana
Tábula Rogeriana, mapa criado por Muhammad al-Idrisi a mando do rei Normando Roger II descrevendo Europa, Ásia e norte da África, colocando o  Sul no topo e não abaixo como costume atual.
Pode-se pensar que os primeiros cartógrafos apelavam para esta possibilidade "cartogramática" e criativa na medida em que os dados que coletavam ou possuíam não eram suficientes para dar conta das informações que precisavam compartilhar com seus semelhantes, daí recorriam à imaginação, às crenças e imposições do poder ou crenças religiosas para realizar seus mapas e, de um modo ou de outro, configurar e consolidar tais crenças e valores. Dada às dificuldades de observação e representação de imagens geográficas, havia o consenso generalizado de que a terra era plana, já que as representações criadas assim o diziam. Esse conceito era bastante reforçado pelo poder na medida em que dominar a informação era também um modo de intensificar o poder por meio da contenção dos dados e informações que possuia e, em geral, negava aos outros: saber era poder.

Exemplo disso é o Geocentrismo, dogma imposto pela religião que definia a Terra como o centro do universo mesmo sabendo, desde a antiguidade, que o sistema Heliocêntrico era  dominante, ou seja, controlar crenças, valores e "verdades" é um dos modos de reprimir e impedir o desenvolvimento de novas ideias, conceitos e avanços humanos.

O mais intrigante é que, ainda hoje existem pessoas que, à despeito de todas as conquistas tecnológicas, geográficas, espaciais para verificação, leitura, registro e observação das configurações terrenas, ainda acreditam que o globo terrestre é plano. É como se houvesse um retrocesso à antiguidade, período em que muito do que se sabia cabia apenas no limite do deslocamento físico do ser humano. Os Terraplanistas são sofomaníacos, retrógrados de carteirinha que comungam uma espécie de seita se satisfazendo em acreditar ou aceitar dogmas que não têm qualquer justificativa ou evidência geográfica, geomórfica ou astronômica que os amparem e defendam, se baseiam apenas em crenças, convicções e valores ultrapassados e absurdos, mas se são felizes assim... Quem somos nós para tirar-lhes a felicidade de acreditar em bruxas, papai noel, bicho papão e assemelhados... Aos ignorantes o prêmio de sua própria ignorância.

O "Theatrum Orbis Terrarum" (Teatro do Globo Terrestre), de Abraão Ortélio foi publicado em 1570 na Antuérpia, é o que mais se aproxima da situação do mundo no período moderno na medida em que inclui as descobertas das explorações marítimas promovidas pelas casas européias colonizadoras. 
Contudo, representar coisas do mundo natural em superfícies planas é recorrente desde as primeiras imagens criadas na superfície das cavernas pelo ser humano. O artifício de transpor algo do meio tridimensional para um suporte bidimensional já era utilizado desde os primeiros momentos da humanidade. Basta refletir a respeito das limitações para produzir e dispor “maquetes” ou “modelos” das coisas que viam ou que queriam representar naquelas cavernas. Embora fosse capaz de modelar, esculpir e construir coisas não foram essas as opções preferenciais escolhidas para suas manifestações.

Mapa múndi das Tabelas Rodolfinas de Johannes Kepler (1627).
A imagem bidimensional condensada, intuída e conformada à superfície bidimensional foi a estratégia eleita ao longo do tempo, basta observarmos que pinturas, desenhos, incisões que predominaram em todo o percurso das imagens desde então.
Representar uma figura é diferente de representar o espaço. Uma figura pode ser uma síntese, uma redução, um simples esquema de algo, mas a espacialidade implica em definir uma posição no espaço a partir da qual se delimitam distâncias, proporções, dimensões e outros referenciais difíceis de construir sinteticamente, basta lembrar que a perspectiva, como meio de representação espacial, só atinge sua plenitude no Renascimento, por volta do século XV.

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Representação tridimensional do Mapa/Globo Terrestre, gravado em um ovo de avestruz, Florença, Itália, 1504.
A mais completa e complexa projeção esférica do globo de 1700.
“Ler” mapas é ler convenções. Se não houver referências que sejam capazes de serem reconhecidas por mais pessoas a leitura não flui, logo, se o objetivo de informar não é atingido um mapa é simplesmente uma imagem hermética ou abstrata...

Outra questão perpassada pela cartografia é o reconhecimento da polaridade entre Ocidente e Oriente. Embora geograficamente a divisão entre estas duas "identidades" seja perceptível num mapa, nem sempre a compreensão à esse respeito é tão clara assim.

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Divisão geográfica entre ocidente e oriente.
Contudo, essa divisão não considera uma questão de suma importância na compreensão que se tem de Ocidente e Oriente. Culturalmente essa divisão é arbitrária e foi fundada na crença de uma civilização mais hegemônica, especialmente originária da Grécia, Roma com aportes do judaísmo e do cristianismo, logo, é uma concepção de caráter conceitual e não geográfica.

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Nesse caso, a linha divisória, faz uma curva para acomodar o conceito de Oriente desde o pensamento Medieval, Moderno até o Contemporâneo.
Logo, os mapas, nem sempre acomodam apenas a geografia, mas tabém a cultura e as aquisições conceituais, informativas e as dominações que ocorreram ao longo da história para explicar origens, condutas, condições e características.

Nesse mesmo sentido, os Cartogramas distorcem formas para reforçar, intensificar dados e informações, portanto não são representações realistas ou geométricas ou geograficamente precisas mas criações elaboradas para dar sentido ao que se pretende dizer:

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Nessa imagem  os países são escalados de acordo com sua população, resultando em densidade populacional quase constante, logo há distorções em relação aos formatos originais geogrãficos.
Este representa Inovações para sistemas alimentares sustentáveis. 

Nesse sentido, a criação de Cartogramas se aproxima mais da Arte do que da Geografia. Um geógrafo pode alterar, mudar, inventar imagens para facilitar a compreensão das coisas, mesmo que os dados sejam corretos as imagens são mais "legais", interessantes e plasticamente mais estimulantes. É o mesmo que faz o artista cuja liberdade poética que lhe dá autonomia plena para imaginar, criar e expandir esses limites, nesse caso, a criação dialoga com a informação e, quem vence, acredito que seja a criação, muito mais rica, estimulante e divertida...

Criem seus mapas imaginários, sejam os gestores de seus pensamentos e ilusões, divirtam-se que a vida é muito curta para ser desperdiçada com dogmas e crenças absolutas...