REFLEXÕES - Curadoria: Mediações necessárias.

Projeto "EX LIBRIS", detalhe, Isaac, 2019.

Mediação é um termo usado para descrever a busca de equilíbrio em estados de conflito, usado no ambiente jurídico. No contexto da Arte Visual entende-se a Mediação como o processo de criar interação entre Obras e pessoas...
Não é simplesmente descrever ou explicar uma ou um conjunto de Obras, mas proporcionar, a quem aprecia, meios para que desenvolva sua própria capacidade de reflexão e análise. Obviamente não é um trabalho fácil, a Educação formal que temos não dá conta nem do básico, tampouco deste tipo de aproximação, esta foi a ideia da criação da disciplina de Educação Artística no primeiro e segundo graus de ensino na década de 1970 no Brasil, cuja falência nos levou ao estado de inanição estética em que vivemos hoje, ai é que entra a tal Mediação.

As transformações pelas quais a Arte Visual passou desde os primórdios da Modernidade em fins do século XIX até meados do século XX e, principalmente, a transição para a contemporaneidade instaurada pela Pós-Modernidade colocou novas questões sobre a Arte, seus procedimentos conceituais, pragmáticos e estéticos criando mais problemas do que soluções, tanto para os teóricos, pensadores e críticos quanto para as pessoas, coitadas, simples apreciadoras...
Mediação deixou então de ser um processo passivo e se tornou ativo: Não basta estar, tem que participar!

A busca pela "interatividade" motivada pelas novas proposições artísticas e pelo afastamento compulsório do público, fez com que as instituições passassem a se preocupar com a dificuldade crescente das pessoas em dialogar, se apropriar ou, no mínimo, assimilar dados, informações ou conceitos veiculados pelas Obras de Arte. Assim, as buscas por uma espécie de abordagem pedagógica sobre a Arte levou a criação, desde a década de 1970, de novos conceitos como Leitura Visual, Literacidade Artística, Comunicação Visual, Educação Estética, Educação Artística... e mesmo aos conceitos operacionais destinados a criar elos de ligação entre Obras e público como os de Curadoria, Projeto Expositivo, entre outros na tentativa de resgatar as pessoas da incompreensão da Arte, já que a Educação Formal não consegue dar conta disso.

Nos últimos anos, em especial a partir da década de oitenta do século passado, temos ouvido falar em “Curadoria” quando se trata de organização de eventos artísticos ou culturais. Este é um termo que tem sido usado e aceito em várias regiões do globo para se referir à produção de eventos nestas áreas. Mesmo que tenha sido tomado de empréstimo da área jurídica, que se referia à nomeação de alguém para administrar bens de menores ou de pessoas que, por um motivo ou por outro, eram incapazes ou impedidas de gerir seus próprios destinos, passou a ser bem-vindo na Arte.
Inspirado na administração pública em que Conselhos Curadores são criados para gerir bens institucionais, mas de qualquer modo, o termo “Curador”, acampou no contexto da arte e, pelo jeito, não vai mais sair.

É possível justificar a existência dos curadores pela crescente necessidade de especialização requerida pelo contexto da arte contemporânea, por um lado, para dar conta de suas idiossincrasias e inovações e, por outro, para intermediar a relação entre as obras e o público.
É importante destacar que se instaurou um novo campo de estudo e atuação profissional para a formação artística ampliando o campo do conhecimento e do pensamento artístico junto aos historiadores, estetas, teóricos e críticos.
Os grandes eventos artísticos têm reforçado a necessidade da presença destes especialistas a cada nova edição. É o que está ocorrendo, por exemplo, com as bienais no Brasil e no exterior. É difícil pensar, hoje em dia, numa mostra que prescinda de curadoria. Até mesmo as mostras individuais têm-se valido dela para tornarem-se mais eficientes, mais claras e melhor entendidas pelo público. Neste sentido a interação entre Apreciação-Educação-Formação do público é também uma missão institucional.

Também na academia esta área vem se mostrando como uma especialidade para a formação graduada e pós-graduada, diversas instituições de ensino superior vêm organizando cursos com esta finalidade. Embora a ideia de curadoria tenha sido vítima de "maus tratos" e enfrentado a resistência de artistas e críticos de arte, especialmente no que se refere ao aspecto autoral, já que a autoria das Obras compete com a autoria da Curadoria, logo, há mais de um autor em diálogo num mesmo processo.
Parecia que o artista perdia o primado da autoria, pois o curador diz ao público como apreender e dialogar com a obra, coisa que era de exclusividade do artista e o crítico, por sua vez, perde a primazia da análise em primeira mão, pois ao leitor já foram antecipadas dados que o auxiliam a tirar suas próprias conclusões. Tanto um quanto outro se sentiram desprestigiados e tentaram minimizar o efeito da Curadoria, ainda bem que não conseguiram.

É necessário entender que, justamente pelas condições da arte contemporânea, que o surgimento da curadoria é, por assim dizer, uma condição necessária e que leva tanto ao aprofundamento da função crítica quanto do conhecimento sobre Arte. O curador, ao selecionar obras e organizar o modo de mostrá-las, passa a exercer, de antemão, uma função que antes cabia ao crítico, mas que era exercida a posteriori. Nas condições da arte atual, não é mais possível esperar pela intermediação do crítico para a compreensão das obras já que, grande parte delas é realizada em “tempo real”, ou seja, performances, instalações, intervenções devem ser compreendidas e assimiladas “on time”, portanto, se dependerem de algum esclarecimento, ele deve ser dado simultaneamente, ou seja, ao mesmo tempo em que o evento ocorre, senão corre-se o risco de falar ao vazio.

Obviamente o curador não é artista nem crítico ou, pelo menos, não exerce estas funções ao realizar o processo de curadoria. Embora sua atuação possa ser confundida ora com um, ora com outro já que há uma “assinatura” no conjunto da mostra que revela um percurso, uma proposição e, até mesmo, uma condução autoral. Entretanto, não há curador capaz de transmutar água em vinho, tampouco prescindir do artista ou do crítico, a cada um cabe a habilidade do seu fazer.
Penso que o curador tem se configurado como mais um elemento que, ao inserir-se no contexto ou no sistema de arte da atualidade, o faz para lhe dar-lhe mais eficiência cultural e institucional. Ao fim e ao cabo, vemos que o curador vem se tornando um dos responsáveis pela mediação entre arte e público, tanto quanto são os críticos e demais teóricos da arte.

A complexidade da qual vem se revestindo a arte nas últimas décadas, mostra que ela não é coisa para amadores, ao mesmo tempo, precisamos acabar com a ideia de que a arte é um universo de código fechado que só serve para os artistas e seus agregados. Fica claro que sem Mediação eficiente a Arte estará cada vez mais distante do público. Sem orientação será cada dia mais difícil integrá-la ao contexto social como um elemento significativo da nossa cultura. É neste sentido que tanto a crítica quanto a curadoria, são elementos importantes para a formação do pensamento estético e contribuem, sem sombra de dúvida, para o crescimento da arte e para o desenvolvimento de suas análises, portanto a Crítica e a Curadoria são duas áreas coadjuvantes, integradas e responsáveis, ao mesmo tempo, pelo processo de construção de um projeto que visa a consolidação do pensar, do fazer e da compreensão da arte como Conhecimento e bem cultural imprescindível ao ser humano.

Agradeço a leitura e o compartilhamento... ou mediação!

REFLEXÕES - A questão da crítica em Arte

É comum ouvirmos dizer que a crítica é responsável pelo julgamento das Obras de Arte, ou seja, a responsável por aferir valores e dizer quais obras devem ou não pertencer ao Sistema de Arte.
O termo crítica é o substantivo feminino de crítico, cuja origem vem do grego kritikós resultando no latim criticu, cujo sentido, em geral, se refere à apreciação, valoração e julgamento de Obras de Arte. 
A meu ver, a atitude crítica é sempre uma conduta analítica que parte da apreciação e tem como objetivo estabelecer ou reconhecer aspectos intrínsecos ou extrínsecos às Obras mediante comparação ou confrontação com as demais manifestações representantes da mesma espécie, lastreados numa mesma cultura ou ambiente social de tal modo que os parâmetros sejam identificáveis e plausíveis dentro daquele contexto.
A crítica pode ser feita sobre um conjunto de obras constituído pela produção de um autor, de um período ou mesmo sobre uma só obra que chame a atenção ou mereça destaque no contexto da cultura. 
Acredito que a atitude crítica deva ser sempre analítica e qualitativa e não só opinativa cujo resultado seja apenas um julgamento raso de valor: bom ou ruim ou pessoal gosto ou não gosto. 
Deve estabelecer parâmetros entre as condições sócio-culturais, técnicas e estéticas de um lugar, período ou manifestações cujo resultado seja capaz de mediar a relação entre a produção artística e o público e, assim, promover o conhecimento sobre Arte. 
Pode-se refletir ainda à respeito de que valores são adequados para uma mediação crítica. É comum ouvir que há dois tipos de crítica: uma positiva e outra negativa. A positiva, em geral, enaltece a obra ou o criador e, ao contrário, a negativa denigre um, outro ou ambos.

Podemos citar como exemplo negativo, o caso da crítica feita a Anita Malfatti por Monteiro Lobato, realizada com extremo mau humor e agressividade, motivada, talvez, pela sua incapacidade de compreender as mudanças pelas quais a arte daquela época passava. Se quiser ler acesse o texto no meu ambiente virtual de aprendizagem: http://www.artevisualensino.com.br/index.php/textos?start=50

Penso que os valores ponderados nas análises críticas devem ser embasados no conhecimento estético construído no percurso da história. Há momentos em que aspectos técnicos são mais importantes ou evidentes do que valores estéticos ou conceituais e, em outros momentos, pode-se observar o contrário. Logo a crítica deve se preocupar com sua vigência, sua validade no seu tempo e no seu lugar. 

Contemporaneamente as atitudes críticas que defendam valores absolutos, rígidos ou definitivos não encontram respaldo no contexto já que a cultura é um organismo dinâmico e em constante mutação, logo, a crítica mais preciosa é a que se faz à luz da sua própria época. Que analisa, avalia e explica a arte em relação ao nosso tempo e constrói o conhecimento para nosso entendimento.

A crítica é importante para balizar o entendimento da arte ou, pelo menos, para nos mostrar a importância da Arte no contexto social na medida em que ela pode refletir as mudanças de atitude, de proposições em contraponto com as mudanças sociais.
De modo geral, deve-se afastar da crítica mal intencionada, depreciativa já que os parâmetros para julgamento estão na própria obra e no contexto cultural em que ela existe e não no gosto ou no interesse de um crítico em particular. artista, conjunto de obras, Deve-se afastar também da crítica dirigida, conduzida para um determinado artista, colecionador ou marchand.
Não há verdade absoluta ou exclusividade de julgamento ou do próprio pensamento crítico. É necessário que o exercício crítico seja livre e isento de influências e de interesses pessoais. Do mesmo modo que a expressão artística é impregnada de valores culturais, crenças e tendências, o texto crítico também estará contaminado pelo um olhar da época, por mais criterioso que seja o crítico. 
É de se esperar que os críticos sejam oriundos do meio em que exercem sua crítica, entretanto, não é incomum que, indivíduos originários de áreas correlatas ou mesmo de áreas completamente diferentes das da arte, exerçam a crítica de arte. 

O risco é que pessoas de diferentes áreas ao se dedicarem ao pensamento crítico, não o fazem com critérios adequados, portanto, suas críticas tendem a ser superficiais ou desfocadas.
Para se fazer crítica conseqüente, a base de tudo é a informação. Há que se conhecer as diferentes teorias da arte, os diferentes artistas de uma dada época sobre a qual se debruça. Não é possível pretender um julgamento adequado sem ter o conhecimento adequado e um domínio de causa pertinente.
É o que penso. Agradeço a leitura e o compartilhamento. 

REFLEXÕES - Obra de Arte ou Ocorrência Estética?

"Em Conserva". proposição conceitual, Isaac, 2019



Durante muito tempo, no campo da Arte Visual, o conceito de Obra de Arte esteve vinculado ao objeto físico, materializado e acabado num suporte bidimensional ou tridimensional. A apropriação estética, por parte do público, se dava diante da obra por meio de apreciação, em geral, passiva.
Cabe também esclarecer que Estético ou Estética não é sinônimo de Forma ou apenas Plástico ou, pior, Cosmético, tampouco qualquer outra interpretação insólita deste termo. Estética, a partir de Alexander Gotlieb Baumgarten, em 1750, passou a ser entendida como um campo de abordagem e conhecimento da Arte. Embora tenha surgido como um ramo da filosofia, passou a se dedicar aos estudos dos princípios e procedimentos poéticos da criação artística.
O termo Estético é um Substantivo, portanto se aplica a um campo de estudo, à essência da Arte e não um Adjetivo, que se usa para classificar ou distinguir a aparência de algo interessante, bonito ou agradável como  se pudesse por ou retirar a "esteticidade" das coisas... No senso comum acredita-se que transformar algo feio em bonito é torná-lo "estético"!

Portanto, entendemos Estética como uma Constante, uma conduta consciente e conceitual que se refere aos procedimentos que motivam e amparam a criação artística, independente das variações/variáveis poéticas ou proposições adotadas pelos criadores. Portanto, a essência da Arte e não algo opcional ou eventual que pode ou não participar da criação. Estética é uma condição sine qua non para a existência de uma Obra de Arte!

O advento da Modernidade,  a partir de fins do século XIX, possibilitou o surgimento de novos procedimentos artísticos e, consequentemente, novas proposições estéticas. Os modos de fazer, instaurar, de produzir Arte mudaram, como também mudaram os modos de entendê-la e apreciá-la.
Se antes a Obra de Arte era uma coisa na qual residia e à qual pertencia a função estética na medida em que as coisas podiam assumir ou simplesmente adotar uma função estética de acordo com seu autor ou sua proposição "desmaterializando-a", com isto instaurou-se um dos grandes problemas para as teorias da arte assim, tanto os críticos quanto os estetas se mobilizaram para entender e clarear este novo campo de procedimento cujas manifestações não seguiam mais os padrões ou condições anteriores: nem sempre podiam ser entendidas tradicionalmente como "Obras" mas... como Ocorrências Estéticas!

Durante todo o século XX, a destituição do objeto enquanto aparato e residência dos valores artísticos provocou um novo problema: como identificar o que chamávamos Obras de Arte? Será que a não materialidade também admite algum tipo de nomeação?

Pode-se dizer que uma das tendências que deram origem à Arte não Objetual foi a do Dadaísmo: um conjunto de procedimentos adotados por um grupo escritores, intelectuais e artistas em 1916, em Zurique na Suíça durante a Primeira Guerra Mundial, que se tornou um dos movimentos mais radicais do século XX. As proposições Dadaístas valoravam muito mais as idéias e menos os Objetos que podiam servir para sua mediação, assim os conceitos passam a ser mais importantes do que os objetos e as obras decorriam das proposições e não das poéticas ou das técnicas tradicionais.
Tais obras resultavam de montagens, apropriações, colagens, construções, intervenções, instalações, instaurações e performances nas quais a questão de ser ou não um objeto era circunstancial e não um fim, em si.
Grande parte do que faziam chamaram de Anti-Arte já que, por princípio, se negavam a praticar o que se entendia convencionalmente por Arte naquele momento, consequentemente, assumiram/adotaram comportamentos sui generis, cuja prática criativa foi nomeada de Dadaísmo: um processo de criação livre, especulativo, inventivo e, principalmente, conceitual.  Uma atitude que rompia, inclusive com a Modernidade, ou seja, a provocação de um pensamento "Trans-moderno"...
É necessário ponderar que ao prescindirem da objetualidade não implicou necessariamente em prescindir da esteticidade. O que acabaram fazendo foi instaurar novos procedimentos, novos modos de configurar o que se poderia chamar ainda de Obras de Arte, assim  não as anularam, mas estabeleceram novos procedimentos e proposições para realizá-las. Pode-se dizer que "o tiro saiu pela culatra" ou que "o feitiço virou contra o feiticeiro", pois tudo o que des-fizeram/fizeram serviu de base e amparo para as pesquisas em Arte que surgiram a partir da Modernidade e que embasaram a Pós-Modernidade e até hoje, dialogam com a contemporaneidade.

As Performances, Instalações, Intervenções que os Dadaístas faziam promoviam experiências estéticas em situação, ativa e interativa gerando  novos modos de apreciação e fruição estética.
As novas manifestações são ocorrências que não conservam os procedimentos tradicionais, logo, exigem novas abordagens para seu entendimento e apreciação.
Chamo tais manifestações de "Ocorrências" para facilitar a distinção das anteriores. Atribuir uma função estética a um objeto "não artístico" exige do apreciador uma reflexão de caráter estético e conceitual ativo. O mesmo se pode dizer a respeito da apreciação de instalações e performances, tais manifestações passam a reduzir ou eliminar a passividade do espectador, eles precisam se posicionam, deslocar, interagir com as proposições, evocar vivências, experiências e conhecimentos, logo, ao se integrarem aos processos e procedimentos artísticos são elevados ao estado de co-autores e, mesmo que não tenham o domínio pleno do que vêem ou sente, dialogam e incorporam conceitos e valores estéticos. Neste sentido a Arte Contemporânea é interativa e mais integrada à vida do que a Arte Tradicional.

A mudança de paradigmas estéticos que ocorreu desde a Modernidade provocou também mudanças  conscientes juntos aos apreciadores e estudiosos, assim como também no Sistema de Arte, fazendo com que os marchands, colecionadores e instituições relacionadas à Arte revissem suas posturas e crenças.

Este olhar que chamei antes de Trans-Moderno, implica na consciência de que a Modernidade, em meados do século XX, já vinha cumprindo sua vocação e já revelava um certo esgotamento e que o Dadaísmo seria uma injeção de ânimo capaz de transformar o passado recene em futuro...
Portanto se torna também necessário readequar o pensamento sobre Arte de tal modo que se encontre,  além dos novos modos de dizer, novos modos de pensar, discutir e apreciar as manifestações contemporâneas sem contaminá-las com preconceitos ou recorrência aos olhares anteriores. Neste o conceito de Obra de Arte Visual que implicava em manifestações, quase sempre objetuais, agora admitem existirem como "Ocorrências Estéticas" mesmo que, eventualmente, surjam por meio de objetos.

É óbvio que a questão da nomenclatura não é o aspecto essencial desta análise, a questão é mais metodológica do que de identificação, pois o que importa é como olhamos o que olhamos.
Antes a existência o objeto era uma prova cabal da existência Artística, Walter Benjamin, já declarara que a reprodução de uma Obra de Arte provocava a perda de sua Aura. Esta "Aura" seria, supostamente sua alma, ou seja algo inerente e decorrente de sua individualidade, originalidade e unidade que seria destruída ou, pelo menos, amenizada por meio das reproduções difundidas sobre ela que tiraria sua "originalidade", no fundo, o que nos tiraria de fato seria a surpresa diante de algo que nunca tínhamos visto... meio piegas ou lírico, mas pouco relevante. O que importa é entendermos que sua essência, sua artisticidade ou esteticidade, não se perde, se aprofunda!

Tal aprofundamento implica em rever as questões anteriores e admitir novas estratégias de criação e apreciação. Quando as obras tinham corpos, eram visíveis, transportáveis, colecionáveis, comercializáveis e até “museologizáveis” era fácil identificá-las, avaliá-las, valorá-las, mas ao perdê-los ou recria-los, reordena-los ressignificando os modos de ser da Arte Visual, como seriam as novas relações com elas?

Se as obras tradicionais recorriam aos temas convencionais e corriqueiros como os mitológicos, religiosos, históricos ou alegóricos para viabilizarem seus trabalhos por meio de narrativas visuais, descrições explícitas e figurações pontuais obtidas da literatura já consagrada anteriormente, como lidar com este novo tempo, com estas novas possibilidades?

A quebra da visualidade retiniana, reprodutiva, mimética e interpretativa das obras anteriores é reordenada pela ressignificação de valores estéticos que, em boa parte, são amparados em qualidades conceituais, afetivas, fenomênicas e propositivas. As qualidades estéticas, sensórias e materiais são ordenadas para construir novos sentidos e significações substituindo, em parte, as descrições literárias que amparavam a Arte Visual Clássica, Acadêmica e Tradicional. Por meio das qualidades que amparam os processos criativos e pragmáticos das poéticas contemporâneas é possível analisar e compreender que uma Obra de Arte (ou Ocorrência Estética) atual recorre,  imita ou dialoga com o visível ou invisível é um "Estado Estético".

Uma obra não é mais um ponto de chegada, mas um ponto de partida. As análises, reflexões que uma obra instiga, provoca é um diálogo muito mais importantes do que verificar se sua imagem ou descrição corresponde ao tema eleito pelo gosto tradicional.
Os sentidos, compreensão, leitura e interpretação não se dão mais na literacidade ou literalidade demonstrada pela visualidade, mas no diálogo entre a proposição artística mediante sua estrutura, sua configuração, no que está além de sua aparência formal e reside em sua essência conceitual, em sua esteticidade...

Agradeço a leitura e compartilhamento. Obrigado.

REFLEXÕES - Apagamento e Resistência na Arte Visual

A Arte surge espontânea e vernacularmente no contexto da humanidade lá na pré-história. 
Digo espontaneamente por não depender de qualquer imposição ou ingerência de ordem social ou material e vernacular por surgir das condições e meios disponíveis ao seu redor. 

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Bisões pintados na pré-história, na Caverna de Altamira, Espanha.
Pode-se dizer também que o surgimento da Arte decorreu de atos de criação e de esperança. De criação por evocar os modos, meios e processos do fazer que exigiram capacidades cognitivas e psicomotoras para realizá-la e, de esperança, por constituir imagens de caráter estético/simbólicas, formais e rituais que a projetaram para o amanhã.

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Pinturas rupestres na Serra da Capivara, no Piauí, realizadas entre 17.000 e 25.000 anos atrás.                                                                                                               
Não demorou muito para que as grandes ondas civilizatórias da antiguidade percebessem o potencial catalizador das imagens e passassem a instrumentalizá-las para exercer o domínio sobre o outro. Desde o Neolítico, não se pode ignorar a instrumentalização da Arte em prol e benefício dos sistemas de dominação que vão se instaurando pouco a pouco. Basta recolher alguns exemplos de manifestações daquela época para entendermos isso.

Detalhe da Paleta de Narmer, rei unificador do Egito, na qual são mostrados, à direita, os inimigos decapitados.
As grandes civilizações passam a recorrer aos fazeres artísticos, especialmente visuais, em benefício da propagação e manutenção de suas ideologias e valores instaurados, na maioria das vezes, por meio da força e do poder. As imagens instituídas por eles revelam atos e feitos de líderes guerreiros por meio de narrativas ilustradas de combates e conquistas expostas nos muros e paredes de palácios, templos, túmulos e outros monumentos edificados para explicitação e imposição de seu poder e glória.

Cena de combate entre Romanos e Dácios, na Coluna de Trajano em Roma.
Pode-se dizer que, a partir desse período, promove-se o Apagamento da condição anterior da Arte como um meio de expressão natural, volitivo e espontâneo substituindo-o por um processo de expansão de valores hegemônicos e impositivos ligado diretamente à dominação.

Nesse sentido a ideia de Apagamento corresponde à condição social em que o poder instituído atua no intuito de fazer tábula rasa de valores, identidade de grupos, etnias e nações promovendo o Apagamento Cultural identitário, com o fim de reduzir os anseios de autonomia e liberdade dos dominados impondo-lhes novos valores pela propaganda e/ou pelo medo e com isso, exercer com mais eficiência seu domínio, a centralização e acúmulo de poder.

Percebe-se também o exercício desta estratégia quando se olha para a prática colonialista de apropriação de bens materiais e civilizatórios de grupos étnicos ou nações, travestindo tal prática de “Proteção” por meio de Expedições Arqueológicas e/ou Históricas, destinadas a identificar, recolher e se aproprias de obras e demais produtos culturais como forma subliminar de dominação. Por meio da submissão do patrimônio imaterial aos acervos de suas maiores instituições museológicas toma, simbolicamente, a consciência do outro.
Basta observar o acervo de boa parte dos Museus de História Natural ou de Arte do mundo ocidental.

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Galeria Egípcia, Museu do Louvre, Paris.

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Museu Britânico, Londres, coleção de Arte Asiática.
Olhando o percurso da Arte, pode-se dizer que a produção artística cumpriu sua função social muito mais próxima do poder do que da expressão de sua própria identidade.
Até o século XIX, o gosto acadêmico instaurado e defendido pelo poder da nobreza, igreja e da burguesia tornou-se um padrão hegemônico amparado na tradição clássica acadêmica dominando a produção artística. Afastar-se dele era uma sentença de morte ou ostracismo social e econômico. Ao contrário, manter-se com ela era uma garantia de sobrevivência, sucesso e distinção, um modo de afastar-se do Apagamento. 

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A Coroação de Napoleão como Imperador da França, realizada por Jacques-Louis David, em 1807, representa o gosto da nobreza e burguesia do século XIX, representado pelo Neoclassicismo.
Mas isso não duraria para sempre, as primeiras tentativas de resgate de sua autonomia expressiva e de sua individualidade passam a ocorrer com mais vigor e efetividade com o advento da Modernidade em fins do século XIX.
A atitude conservadora dos defensores da Arte tradicional passa a ser a de detratar e desqualificar os artistas inovadores que, segundo eles, só eram capazes de obter uma mera “Impressão” do sol nascente, agir como “Feras” ou praticar “Bizarrias Cúbicas”, nomeando assim o que seriam os primeiros movimentos Modernos: Impressionismo, o Fauvismo e o Cubismo. Assim os críticos Louis Leroy e Louis Vauxcelles atuavam em defesa e em reforço da visão hegemônica no intuito de Apagar, extirpar da sociedade aqueles que insurgiam contra o status quo dominante.

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Impressões sobre o nascer do Sol, Claude Monet, 1872.

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Henri Matisse, Quarto Vermelho, 1908.

Violin and Pipe, 'Le Quotidien', 1913 - Georges Braque
Georges Braque, O cotidiano, 1913.

Por outro lado, por convicção ou por opção, a Arte chamada de Vanguarda investe e aprofunda suas proposições, provocações e inovações desafiando o gosto reinante. Só bem mais que tais transformações surtiriam efeito. O reconhecimento de suas obras, da capacidade criativa e transformadora destas novas proposições e poéticas só ocorre depois que se entende a Arte como um Campo de Conhecimento Expressão Propositivo e não apenas como um recurso ornamental e decorativo.

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Marcel Duchamp com "A fonte" e "Roda de bicicleta", criador do Ready Made. Dadaísta precursor da Arte Conceitual.

Mesmo assim, até hoje este modo livre de fazer Arte sofre agressões. Recebeu a alcunha de “degenerada”, justificando sua expulsão das galerias e instituições oficiais na Alemanha pelos Nazistas e na Rússia pelos Socialistas o que mostra a dificuldade de manter a liberdade de expressão.

Recentemente, a mostra: Queermuseu - cartografias da diferença na arte brasileira, que reunia obras de 85 artistas como Volpi e Portinari, entre outros, após críticas de movimentos religiosos e do Movimento Brasil Livre (MBL), foi suspensa na galeria em que estava sendo realizada e não pode ser instalada em outras como originariamente previsto.


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Fato semelhante ocorreu no MARCO - Museu de Arte Contemporânea de Campo Grande, MS, por atitude do Delegado da Delegacia Especializada de Proteção a Criança e ao Adolescente que apreendeu um dos quadros da artista mineira Alessandra Cunha Ropre por supor uma pretensa apologia à pedofilia... Estes são fatos que tipificam tentativas de Apagamento hoje em dia.

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Obra de Ropre "Presa" do MARCO em Campo Grande, MS.

Por outro lado, o afastamento da Arte de suas funções pragmáticas, ao contrário de apagar sua presença na sociedade, promove a intensificação por meio de novos processos poéticos, estéticos e investigativos. Pode-se dizer que em resposta às tentativas de desarticulação e Apagamento a consolidou como campo de atuação reconhecendo-a como autônoma e propositiva ampliando os estudos e pesquisas realizadas sobre ela e por meio dela.

A partir do Modernismo a Arte passa a explorar novos processos e proposições estéticas dando vasão às tendências conceituais. A partir de então instaura sua presença como forma de investigação e constitui um campo conhecimento específico que antes não era visível tampouco respeitado.

Na medida em que o aprofundamento da Arte na investigação expressiva lhe traz mais autonomia, personalidade e criatividade também a afasta da classe dominante que, por não conseguir mantê-la sob seu domínio, passa a negá-la, ou seja, tenta apaga-la.
No entanto, não se pode ignorar também que ao mesmo tempo em que havia uma ruptura com o modelo ou padrão de gosto anterior, as vanguardas são sendo adotadas por novos públicos: já que não é possível vencê-la, alia-se a ela.

A Obra de Vincent Van Gogh, A Arlesiana, Madame Ginoux, obteve 40,3 milhões de dólares em leilão da Crhistie em NY.
A nova geração burguesa, que surge a partir da industrialização, instaura o capitalismo predatório e consumista que tem pouco apreço e nenhum compromisso com a tradição e se torna a principal destinatária do espólio da Arte Moderna e investidora da Arte Pós-moderna, cuja preferência resvala e dialoga, quase sempre, com a Indústria Cultural e dialoga com cifras extremamente altas transformando-as em verdadeiras âncoras financeiras prontas a serem renegociadas por valores cada vez mais elevados.

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Andy Wahrol, Campbell's Soup, 1962.

Para esta geração a Arte e os artistas não são mais valorizados pelas suas proposições culturais, estéticas ou conceituais e sim pela sua capacidade de inserção no sistema de consumo regido pelas grandes galerias e casas de leilões que passam a especular com as obras de arte transformando-as em ativos financeiros.

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Rabbit, de Jeff Koons, vendida por mai de 90 milhões de dólares.

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Damien Hirst, "Pelo Amor de Deus", de 2007, caveira incrustrada com mais de 6.000 diamantes, vendida por mais de 100 milhões de dólares para um consórcio de investidores. 

As Obras de Arte, antes negadas, desqualificadas passam a serem leiloadas por valores astronômicos. Seria, quem sabe, o reconhecimento tardio de sua importância? Não, é apenas mais uma estratégia de neutralização ou apagamento menos agressivo, mas igualmente eficiente. Agora, ao invés de confrontá-las parece ser mais eficiente transformá-las em bens de consumo, em produtos mercantis, numa espécie de commoditie e, deste modo, são destituídas de seus valores estéticos e culturais, de suas origens, raízes antropológicas, étnicas ou sociais.

Recolhendo-as aos acervos particulares ou institucionais elas são afastadas de sua identidade, de sua função social e do público. Se antes a apropriação da Arte era exercida pelo poder para usá-la como instrumento de dominação, hoje ele se apropria dela para neutralizá-la, reduzir ou anular sua capacidade de reflexão, contestação e libertação tornando-a refém demonstrando o poder do mercado sobre elas.
Basta observar que, mesmo alguns dos mais radicais e inconformados acabam sendo cooptados pelo processo mercantil.

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Uma obra de Bansky, na Sotheby's, é fragmentada durante o fechamento do leilão diante do público quando atingia o valor de 1,18 melhores de euros, mesmo assim o comprador (anônimo), manteve a aquisição.
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Cranio, grafiteiro diante de uma de suas obras em muro urbano.
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Exposição MayDay de Cranio em galeria paulista, outside/inside...

Isto posto, resta explicitar o lado da Arte, o da Resistência.

Resistênciase refere à reação e enfrentamento contra as tentativas contínuas de esvaziamento promovidas diuturnamente contra ela. Tais tentativas ocorrem tanto no ambiente da sociedade como um todo e também no contexto governamental pela falta ou ineficiência de políticas públicas destinadas ao amparar sua produção ou ensino.

Penso que o fato de não reconhecer ou considerar a Arte e outros campos das chamadas ciências humanas ou sociais com o mesmo valor que se dá às ciências naturais ou exatas é um dos fatores que leva ao seu Apagamento. A lógica do capitalismo é a de valorizar tudo o que seja passível de se transformar em produto e consumo e anular tudo o que não seja transmutado em dinheiro ou poder. Uma estratégia eficiente tem sido a de reduzir a capacidade crítica por meio da inanição da Educação Pública. O que se mostra por meio da construção de um estado de instabilidade contra os profissionais para que permaneçam inseguros, minando sua confiança, levando-os ao desânimo reduzindo sua Resistência.
Basta observar as condições precárias para cumprir as exigências curriculares, pedagógicas em instituições cujas estruturas físicas e materiais não atendem as necessidades básicas e suas especificidades resultando em indicadores educacionais desfavoráveis. Em contrapartida as instituições privadas avançam desmesuradamente.

Tal situação tem motivado a mobilização de seus profissionais em torno de organizações de classe que lutam para estabelecer diálogos com a sociedade e o governo em busca de soluções adequadas para seu ensino.
Grande parte desta resistência é caracterizada pela ação destes profissionais que, independe de ações governamentais, buscam sua qualificação, constroem processos e pedagogias destinadas a suprir ou contornar as adversidades por meio da conscientização, de estratégias proativas e alternativas permanentemente reveladas através das proposições, experiências, metodologias, processos e procedimentos, especialmente no campo da Arte e do seu Ensino.

Este é um dos pontos de Resistência que se mostra, não pelo pessimismo e enfraquecimento das bases, mas pelo otimismo e esforço compartilhado pela produção de conhecimento que subvenciona e reforça o saber nesta área de ensino, independente da ausência de iniciativas ou políticas públicas. Assim realimentam e reforçam a crença de que as coisas podem mudar. Parte, não menos importante da sobrevivênciaa este apagamento, corresponde à presença do ensino emsobreArte que ainda existe nas Universidades e a partir delas.

Neste nível é que se realiza a formação dos Agentes de Mudança aqui identificados como os professores e profissionais em Arte que exercem suas atividades no ambiente social por meio do ensino, da pesquisa e também nos serviços nas instituições de promoção, manutenção e difusão artística.

Resistência é a tônica que sempre marcou a presença da Arte na sociedade e, queiramos ou não, permearam e continuarão permeando nosso campo de Ensino e produção, especialmente em tempos de exceção.

Agradeço a leitura e o compartilhamento, obrigado.