REFLEXÕES - AUDIOVISUAL OU A VITÓRIA DA IMAGEM EM MOVIMENTO.

Um assunto que tem chamado a atenção nos últimos tempos é a expansão tecnológica digital de aparelhos capazes de tomar imagens em movimento e sons ao mesmo tempo. Pode-se dizer que isso acabou com as fronteiras que delimitavam os fazeres da fotografia e os do cinema. Mas definir limites não basta, não é suficiente para clarear onde começa ou termina um ou outro, então vale a pena "rebobinar" a fita para compreender um pouco mais essa fusão.

Como se sabe, produzir o efeito ou a sensação de movimento partindo de imagens estáticas, fixas não é fácil. Desenhistas, pintores, gravadores, escultores e demais produtores de imagens se debateram com isso durante muito tempo. Só para relembrar o percurso histórico das tentativas de convocar o movimento para o campo das imagens vamos olhar para trás. Desde a pré-história criar esse efeito parece ter sido recorrente.

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Será que a sequência de equinos da caverna de Chauvet, na França, não buscava a sensação de movimento?
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Pode-se dizer o mesmo dos gamos representados em sequência na caverna de Lascaux, na França? Se isso fossse um Flipbook, talvez mostrasse o percurso do gamo no espaço!
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Tropa de burros ou uma sequência em movimento representada no antigo Egito.
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Mais uma tropa ou percurso?
  
O percurso de uma boiada se movimentando? Bezerro sendo retirado de um açude? Peixes nadando num açude, fugindo de um crocodilo? Cenas descritivas que narram cenas e ações cotidianas do antigo Egito.
Várias tentativas desse tipo de representação foram feitas ao longo dos séculos, contudo para abreviar o percurso vamos saltar para o século XX e olhar para o Movimento Futurista, cujo manifesto foi publicado pelo poeta Filippo Marinetti em 1909. Talvez tenha sido este o melhor resultado em produzir o efeito de movimento em objetos estáticos. Os artistas do Futurismo tematizaram o movimento, a ação e suas representações por meio de pinturas, desenhos e esculturas logrando produzir essa sensação mediante a repetição de linhas, curvas, formas mediante o uso de figuras reconhecidas detentoras de movimento -como fizeram os antigos Egípcios-  acrescentando novos recursos como veículos automotores: automóveis, locomotivas, navios e aviões ou ainda evocando corridas de cavalos, bicicletas, ação ou percurso de pessoas numa clara tentativa de sugerir ação e movimento sem nunca produzí-lo virtualmente em suas obras.

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Dinamismo de um automóvel, Futurismo, Luigi Russolo, 1920.

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Dinamismo de um cão passeando na coleira, Futurismo, Giacomo Balla, 1912.
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Menina correndo, Futurismo, Giacomo Balla, 1912.

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Velocidade abstrata e ruído, Futurismo, Giacomo Balla, 1913-14.
Independente das tentativas poéticas dos antigos artistas ou dos Futuristas, o desenvolvimento das imagens técnicas já estava em andamento desde o século XIX.

Tudo começou com a fotografia ao possibilitar o surgimento das chamadas "imagens técnicas", aquelas realizadas por aparelhos que reduziam significativamente a intervenção da mão humana na sua captação e edição. A dúvida gerada inicialmente é se tais imagens eram artísticas ou não, já que as habilidades requeridas para sua construção que, até então ficavam à cargo dos artistas e suas mãos, foram substituídas por aparelhos que não tinham sensibilidade, alma ou intenção, faziam apenas registros daquilo que se encontrava à sua frente, gerando imagens sem alma, ou como disse Walter Benjamin: sem "aura"...

Historicamente a primeira imagem tomada por meio da luz é atribuída a Joseph Nicephore-Niepce que, em torno de 1824-27, consegue gravar uma cena do jardim de sua casa em Chalon-sur-Saône, tomada de uma das janelas da residência.

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À esquerda a placa de estanho preparada com betume da judéia em que foi gravada a imagem e à direita uma "tradução" visual em papel interpretando a cena. Chama o processo de Heliografia: grafia do sol, mais tarde passa a ser chamada de Foto (luz) grafia (desenho).
Niepce desenvolvia experimentos dedicados à reprodução de imagens, tentando abreviar os processos usados na época nas gravuras em metal, no intuito de facilitar e acelerar procedimentos para impressão. Nesse sentido pode-se dizer que a fotografia foi uma descoberta paralela ou um "acidente de pecurso"... Mas, sem ela talvez não tívessemos chegado ao cinema, nem ao vídeo, tampouco ao audiovisual...

Bem, a fotografia se torna um meio de reproduzir o visível. Mas não era apenas Niepce que andava em busca de processos que pudessem reproduzir imagens do mundo natural em sistemas artificiais, vários inventores se dedicaram a desenvolver processos de tomada e impressão de imagens durante todo o século XIX avançando para o século XX. Muitos tiveram sucesso, mas o marco passou a ser a imagem de Nicephore-Niepce pois a invenção é comunicada oficialmente à Academia de Ciências e a Academia de Belas-Artes na França, no dia 19 de agosto de 1833, data que é marcada até hoje como o dia internacional da fotografia.

Inicialmente a fotografia não gerava boas imagens, pois sua qualidade baixa e resolução precária a desqualificavam como meio de reprodução do visível. Mas aos poucos se torna um dos meios mais eficientes para tomar e reproduzir imagens do mundo natural. Contudo interessa saber quando começa sua relação com o movimento pois, como vimos, obter a sensação de movimento por meio de imagens fixas era um problema que assobrava os inventores há tempos.

Kinesis do grego significa cinético que corresponde à ação, movimento. Os irmãos Lumiére, inventores franceses, em torno de 1890, se apropriam do termo grego kinema para batizar a invenção de um aparelho, o Cinématographe, capaz de reproduzir virtualmente a sensação de movimento por meio da projeção de imagens em sequência. Mais tarde ocorre a abreviação de cinematógrafo para cinema e depois a redução para cine. Ao mesmo tempo a palavra deu origem a cinematografia, cinegrafia, cinéfilo entre outras. Mas, antes disso, como a fotografia passou a lidar com a questão cinética?

Desde 1860 vários inventos como o Zootrópio, Praxinoscópio, por exemplo, eram capazes de criar a ilusão de movimento usando imagens desenhadas em faixas que podiam girar nesses aparelhos e "produzir a sensação de movimento".

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À esquerda o Zootrópio. Onde uma sequência de desenhos é observada por meio de um orifício criando a ilusão de que se movem ao girar o aparelho. À direita o Praxinoscópio onde a sequência de desenhos é observada por meio de espelhos, criando a sensação de que se movem ao girar o aparelho. Pode-se dizer que são os precursores da Animação e não do Cinema. Mas vale a tentativa.

Contudo as primeiras relações entre a fotografia e o movimento surgem com dois fotógrafos: O Inglês Eadweard Mubrydge e o Francês Étienne-Jules Marey.

Muybridge, realiza em 1872 uma série de fotografias de galope de cavalos quando é contratado pelo ex-governador da Califórnia Leland Stanford, grande apreciador de corridas de cavalo, que afirmava que num dado momento do galope o cavalo mantinha as quatro patas no ar. Tal afirmação era sempre contestada por não haver prova disso, por isso resolve contratar Muybridge para comprová-la.
Muybridge monta uma série de câmeras (12 incialmente em 1877, depois 24 em 1878) que são acionadas a cada passagem dos cavalos gravando diferentes momentos do galope. Sucesso! Mistério desvendado, ele consegue comprovar o que Leland defendia:

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É possível ver isso na segunda, terceira e quarta imagens da sequência.
Marey, a partir de 1880, desenvolve sistemas de câmeras dedicadas a registrar, inicialmente, o vôo de pássaros, publicando o livro: Le Voi des Oiseaux (O voo das aves). Estende seus estudos para outros animais e seres humanos. A diferença dele para Muybridge é que produz imagens numa mesma superfície fotográfica enquanto Muybridge faz sequência de imagens.

Marey, Voo de um pelicano, 1882.

Tanto um quanto outro, por meio dos estudos do movimento que desenvolveram, contribui para a concepção da Animação Cinematográfica que irá se consolidar como uma das muitas técnicas de criação do Cinema.

A criação do Cinema também não é um privilégio apenas dos irmãos Lumiére, embora tenham desenvolvido o processo de registro e projeção. No dia 28 de dezembro de 1895, no Salão do Grand Café em Paris, fazem a primeira apresentação pública de seu invento e isso define sua data de surgimento. No entanto, antes disso, Thomas Edson havia inventado, em 1891, dois aparelhos para criar a ilusão de movimento: o cinetógrafo (câmera para gravar) e depois o cinetoscópio (aparelho para visualizar). A diferença entre os dois é que o aparelho de Edson não projetava e o dos irmãos lumiére projetava, isso é uma grande diferença já que o cinema passa a ser uma forma de entretenimento destinado ao público, como é até hoje, e não um aparelho destinado à observação pessoal. Dai a importãncia maior dos irmãos Lumiére em comparação a Thomas Edson.

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A chegada de um trem á estação da cidade, 1895, Irmãos Lumiére. (https://www.youtube.com/watch?v=4GGlUL6_vTM)
Depois dos Irmãos Lumiére o processo de captação e projeção de imagens só se desenvolveu. De curiosidade e entretemimento ele se torna um sistema de registro capaz de reter, documentar dados de acontecimentos e eventos auxiliando na construção da memória coletiva. Ao mesmo tempo não se afasta do da ficção, fantasia e entretenimento abrindo um campo promissor e rico que culmina hoje nos grandes estúdios produtores de blockbusters capazes de arrecadar milhões de suas produções em poucos dias de exibição comercial.

Inicialmente mudo, sem som, apresentava apenas imagens em movimento. Muitas apresentações cinematográficas eram apoiadas por pianistas que, durante a projeção, executava partituras musicais tentando criar uma espécie de sonoplastia ou, no mínimo, música de fundo para as ações desenvolvidas na tela.

Em 6 de outubro de 1927, a Warner Bros exibe pela primeira vez um filme sonorizado: "O cantor de Jazz", de Alan Crosland, em New York:

 Poster O cantor de jazz

Embora não fosse totalmente sonorizado, as passagens de fala e canto eram sonorizadas e reproduzidas com eficiência pelo sistema de som instalado na sala de exibições inaugurando assim a sonorização no cinema. Inicialmente a filmagem e a gravação sonora eram realizadas separadamente e depois montadas em sincronia na edição. Depois os filmes passaram a ter bandas sonoras acopladas e a possibilidade de gravação direta no meio ambiente. Mesmo assim boa parte da trilha sonora como efeitos, músicas e outras possibilidades de audio sejam juntadas em processos de edição.

A partir daí o cinema se torna um processo discursivo sincrético, ou seja: a plasticidade, a luminosidade, o movimento, os sons, a música, as falas, os textos funcionam sincronicamente para a produção de efeitos de sentido únicos. Os diferentes recursos discursivos atuam num só alinhamento no intuito de tornar mais eficientes os sentidos pretendidos pela narrativa.

Isso tudo ocorreu no sistema de captação e projeção dito analógico, em que filmes e gravações são realizadas em aparelhos que operam sobre suportes físicos, materiais como as peliculas cinematográficas com bandas sonoras luminosas ou magnéticas. As imagens são tomadas quadro a quadro e, depois de processadas e editadas, são projetadas sucessivamente criando um efeito de continuidade perceptiva (contando com o que é chamado de persistência retiniana ou efeito PI), fazendo com que os espectadores percebam as imagens em continuidade, sem interrupções quadro a quadro.

Com o desenvolvimento das tecnologias eletrônicas, foi possível criar novos sistemas de registro e projeção de imagens e som mais eficientes e até populares nos quais a possibilidade de fazer seus próprios filmes atingem camadas mais amplas da população.

A migração dos meios analógicos para os digitais se inicia com a criação de cãmeras Videográficas que, por sua vez, decorrem da invenção da televisão. Ai entra em cena o Vídeo Eletrônico, embora analógico, pois ainda possuem meios de registro físicos como fitas magnéticas, já se posicionam num patamar tecnológico que possibilita a migração para as tecnologias digitais que dominam a atualidade. A captação das imagens é feita em fluxos luminosos contínuos, bem como sua projeção, não há quadro a quadro, isso facilita a sensação de movimento. Hoje em dia os registros são exclusivamente digitais e nem se percebem os pixels ou qualquer ruptura ou descontinuidade nas imagens ou sons. É possível gravar imagens ao vivo nas quais o som ambiente passa a fazer parte do processo reproduzindo com maior credibilidade o efeito de "ao vivo", tão caro aos meios de comunicação contemporâneos.

A transformação do sistema videográfico para os sistemas digitais trouxeram maior eficiência aos processos de captação, gravação, edição e difusão de imagens em movimento e som. Uma câmera de fotografia contemporânea também é capaz  de fazer filmes, ou seja, registrar imagens em movimento, do mesmo modo que é capaz de produzir imagens fixas. Neste caso a fronteira entre um meio e outro é apenas consensual. Eu faço fotografia e você faz cinema, mas ambos usamos o mesmo equipamento.

Tradicionalmente, a cinegrafia é o campo de produção e apreciação da imagem cinematográfica, ou seja o da fotografia em movimento. Recentemente, o termo cinefotografia, vem aparecento como um neologismo para identificar equipamentos capazes de atuar nesses dois campos; o da fotografia e o da videografia. Um campo de atuação coberto pela produção de imagens de caráter personal quando se considera que muitas produtoras de registros sociais, como casamentos e demais festividades coletivas ou individuais procuram profissionais para produzir registros de seus eventos para marcar datas e contruir memórias pessoais ou coletivas. Dado ao menor custo de equipamentos híbridos, tais produtoras optam por usar câmeras fotográficas que possuem recursos videgráficos ao invés de investirem pesado em cãmeras de qualidade cinematográfica, por exemplo.

Com o desenvolvimento dos sistemas digitais, eles passam a ser acoplados aos aparelhos de telefonia celular. Algumas vezes, tais imagens superam a qualidade das antigas câmeras de vídeo e até mesmo se comparam às câmeras cinematográficas da atualidade. Tal possibilidade abre um novo nicho: o da produção de imagens em movimento destinadas ao registro de atividades do cotidiano e, na maioria das vezes, produzidas pelo próprio usuário do equipamento, os youtubers estão ai para provar esse ponto de vista.

Esta nova tendência, estimulada pela facilidade de gravação de vídeos por meio de aparelhos celulares, câmeras fotográficas compactas e também daquelas que operam com sensores full HD, cujos resultados são excelentes e podem ser vistos em gravações de vídeos no Youtube, na publicidade e mesmo em algumas séries televisivas americanas. Baixe os exemplos indicados aqui e julgue você mesmo a qualidade dos vídeos produzidos pela Canon 1D Mark IV, por exemplo:clique aqui! e aqui!

No mercado de serviços da área, esta nova tendência tem sido valorizada no contexto dos eventos sociais como casamentos e outras festividades, nos quais as câmeras fotográficas de última geração, além de proporcionarem a documentação fotográfica, têm estendido sua atuação para o registro de cenas em movimento. Tal expansão, além de dispensar as câmeras de vídeo e de cinema digitais, amplia a área de atuação dos fotógrafos de eventos dando-lhes a oportunidade de aumentar seu universo de atuação com os mesmos recursos e investimentos já realizados para seu exercício profissional, bastando para isso se qualificarem como cinegrafistas.

No contexto da documentação pessoal, ou seja, no registro das atividades e eventos que envolvem as pessoas no seu cotidiano, nos seus passeios, nas suas viagens e nas festividades de seus familiares e amigos, tais equipamentos têm sido de grande utilidade e são usados com muita freqüência, mas, nem sempre, com a habilidade necessária. O usuário comum não está habituado a lidar com suas câmeras, tampouco com a construção das narrativas que se dispõem a produzir, isto se deve à falta de conhecimento do equipamento que tem em mãos, além de saber muito pouco dos procedimentos discursivos instituídos pela linguagem cinematográfica.
Por ser leigo na área enfrenta dificuldades de toda ordem. Em boa parte, tais dificuldades poderiam ser resolvidas pela leitura dos manuais de operação das câmeras. No entanto, os poucos que se dispõe a ler com atenção tais orientações técnicas nem sempre as compreendem. Os conceitos e a terminologia utilizadas, ao invés de auxiliarem os usuários em seu fazer, aumentam sua dificuldade na operação do equipamento e na construção da narrativa. Além disso, pouco ou nada conhecem dos programas destinados a tratar e editar seus registros, que poderiam dar-lhes características mais profissionais e menos amadorísticas.

Gravar imagens em movimento nunca foi tão fácil como hoje em dia. As dificuldades enfrentadas ao longo do tempo para produzir registros imagéticos, compatíveis com as ocorrências do mundo natural, só foram superadas após o surgimento da fotografia. Mais tarde do cinema, que nada mais é do que a fotografia em movimento, este passou a ser o modo de documentar as ações humanas por meio do registro de seus eventos e acontecimentos. Depois o vídeo, imagem eletrônica que veio competir com o cinema, vem dominar o contexto das imagens em movimento e, atualmente, a produção de imagens em meios digitais, fixas ou em movimento, esta é a tendência de produção na área. Portanto, gravar imagens em movimento, inclusive com sons originais, é uma conquista das tecnologias recentes, disponibilizadas nos meios e mídias digitais. Aqui entramos no campo do chamado Audiovisual.

Mesmo entendendo o que é Audiovisual, há que se considerar a convergência tecnológica que tem aproximado ou integrados tecnologias, antes separadas, mas que agora são sincronizadas ou sincretizadas. Nesse caso o Audiovisual compreende o conjuto de tecnologias de comunicação cujos aparelhos e produtos incorporam ou usam imagens em movimento e sons. Com isso englobam o cinema, o vídeo (analógico ou digital), a televisão tradicional, digitral e em rede; os gêneros de documentário ou ficção e mesmo os processos poéticos e criativos experimentais; animação tradicional ou computadorizada, em desenhos ou tridimensionais; a publicidade, os videclipes, programas de televisão, internet; videogames e demais recursos interativos em que imagens, sons e movimento interagem com indivíduos, pessoas, grupos ou comunidades.

Entretanto, produzir estas imagens associadas ao som ambiente ou sons acoplados, embora não seja algo difícil, também não é tão simples. Mesmo considerando que a realização de tais operações não é uma coisa simples para os usuários, também não é impossível realizá-las. Para produzir tais registros há certa dependência de conhecimentos, tanto de cinema quanto de sonoplastia. Tais conhecimentos podem ser obtidos pelo uso dos recursos técnicos disponíveis nas câmeras compactas, como também por meio de programas de edição disponíveis na rede de computadores, para tanto, é necessário conhecer os equipamentos quanto às suas características e possibilidades.

No entanto, no campo da formação para esta área de atuação há uma carência muito grande de cursos destinados a este segmento mais popular o que, na prática, se traduz em boas oportunidades para buscar a formação profissional nessa área já que a oferta de produtos e serviços que visem a orientação, qualificação e desenvolvimento de novas aptidões requerem profissionais voltados para este nicho de atuação emergente, seja ele informal, acadêmico ou profissional.

Espero ter dado uma visão geral desse campo e estimulado mais pessoas a olhar para ele com mais atenção e quem sabe, adotá-lo como meio de criação.

POÉTICA PROPOSITIVA: O caso da Transposição Fotográfica.

Transposição Fotográfica: Imagens em Trânsito.

A ideia de Imagens em Trânsito aborda a questão da passagem de uma imagem de um lugar para outro, ou seja, sua transposição por meio de procedimentos técnicos. Nesse sentido não me refiro às aprensões visuais realizadas sobre o mundo configuradas como desenhos, pinturas, esculturas, mas aos processos de reprodução de imagens, ou seja, os modos como uma imagem é transferida de um lugar para outro, para isso tomo a fotografia como referência.

É possível supor que a primeira reprodução de uma imagem pode ter surgido quando o ser humano, na pré-história, percebeu que era possível impor as marcas de suas próprias mãos, borradas de pigmento, numa superfície qualquer ou antes disso, percebido as marcas de seus próprios passos no solo, ou ainda o rastro dos animais que perseguia. Imprimir, decalcar, pressionar as mãos, coisas e objetos sobre superfícies moldáveis ou maleáveis, como a argila por exemplo, resultavam em reproduções semelhantes àquilo que as gerava, uma matriz aleatória ou casual era capaz de criar uma imagem à semelhança de sua origem.

Isso pode ter causado uma espécie de encantamento, deslumbramento. Descobrir a possibilidade de replicar imagens é fantástico. Penso que este foi o momento zero, o ponto original dos processos de reprodução de imagens, de lá para cá surgiram as gravuras, as fotografia, prensas, matrizes, formas, múltiplos e os demais processos reprodução e estamparia disponíveis hoje em dia.

Nesse meio tempo a fotografia aparece. Embora ela tenha se consagrado como um meio de registro de imagens tomadas do meio ambiente por meio da luz, surgiu justamente a partir das muitas tentativas para reproduzir imagens.
Um dos principais marcos dessas investigações foram as experiências de Joseph Nicephore-Niepce, na França, na década de 20 do século XIX que abriram dois caminhos distintos: um que possibilitou tomar imagens diretamente do meio ambiente sem intervenção da mão humana -a fotografia- e outro que possibilitou a reprodução imagens amparando o desenvolvimento dos processos gráficos fotomecânicos -a imprensa- que, até hoje, suporta o mundo editorial.

Joseph Nicephore-Niepce, Imagem gravada por meio da luz em superfície metálica, reconhecida como a primeira Fotografia, França, 1824-27.
A fotografia deu à humanidade a possibilidade de registrar o entorno, os eventos, acontecimentos e documentar seu percurso construindo uma memória visual rica e grandiosa sem que fosse necessário desenvolver habilidades cognitivas e manuais para isso. Contudo essa memória não teria sentido se não fosse difundida, distribuída, assim os processos de reprodução também contribuíram para que essa memória se tornasse um dos patrimônios mais ricos da humanidade.

O percurso temporal de quase dois séculos desde o surgimento da fotografia no século XIX, sua consolidação no século XX e sua expansão no século XXI expõe mudanças substanciais, tanto em relação aos aspectos técnicos e tecnológicos quanto histórico/conceituais das imagens em geral e, em particular, das fotográficas.
Nesse mesmo período de tempo a tecnologia analógica foi transplantada para os computadores em seus programas e periféricos e muitas imagens passaram do meio ambiente para o suporte físico ou analógico e depois digital. Hoje em dia produzir ou reproduzir imagens não é mais um “bicho de sete cabeças”, mas um recurso acessível tanto para aqueles que entendem a fotografia como meio documental  quanto os que a adotam como meio expressivo.

Os aparatos digitais disponíveis na atualidade facilitam muito a captação, transformação e reprodução de imagens. Processos e recursos de alta tecnologia são capazes de produzir registros e mesmo criar imagens de alta qualidade visual e também de reproduzí-las com grande qualidade e eficiência.

Nesse sentido a facilidade com que são captadas, manipuladas, transfomadas e usadas as imagens na contemporaneidade acaba contribuindo para que sua importância reduza na razão direta de sua expansão tecnológica. Por outro lado, a produção em massa de imagens tem sido um estímulo para que as pessoas e, principalmente, os artistas invistam nas pesquisas híbridas relacionando processos tradicionais e novas tecnologias e, ao mesmo tempo, busquem processos alternativos, criativos que possam estabelecer novas relações com as imagens e seus apreciadores, usuários.

Seguindo essa linha de raciocínio passei a refletir sobre a possibilidade de desenvolver uma série baseada na reprodução/transposição de imagens, para isso recorri a dois caminhos: um foi o acervo pessoal de fotografias que produzi durante os anos que residi em Florianópolis. Naquele período realizei fotografias de paisagens da ilha, publicadas diariamente em rede, numa série que batizei de “Uma foto por dia”. Portanto, tinha à disposição um bom número de fotos digitais, por isso considerei recorrer a elas para o desenvolvimento desse novo projeto poético. O segundo caminho foi desenvolver a artesania necessária para a transposição daquelas imagens para suportes menos convencionais. Assim a proposição consistia na busca de meios e/ou processos alternativos para trabalhá-las.

Tomando por base a trajetória de tomada e reprodução das imagens ao longo do tempo é fácil perceber que os processos evoluíram a ponto de, hoje em dia, a maioria delas residir em arquivos digitais e, para serem vistas, devem ser convertidas para monitores, projetores ou impressas em meios físicos. Nesse caso não me interessava recorrer à impressoras convencionais ou de alta performance para imprimí-las em papéis de alta qualidade ou metacrilato, consideranto as últimas tecnologias de impressão de imagens fotográficas.

Pensei em quebrar essa lógica e o que me veio à mente para ploblematizar essa questão foi homenagear o processo realizado por Nicephore-Niepce, quando conseguiu obter imagens por meio do trasladamento da luz ambiente para placas metálicas, nesse caso, poderia evocar os primeiros tempos das imagens fotográficas tomando como referencial a precariedade com que elas eram realizadas e a interferência de seus suportes. Decidi transpor as imagens para placas metálicas.

O principal objetivo era experimentar meios e abordagens mais pragmáticas que possibilitassem variações e intervenções sobre a imagem durante o processo. Assim me dispus a buscar materiais e meios alternativos facilmente acessíveis que, além de seu aspecto plástico tivessem potencial didático para serem usados também em ambientes de ensino. Nesse processo de transposição de imagens há duas questões que evocam os procedimentos artísticos tradicionais: o domínio de habilidades artesanais e técnicas. Num mundo em que domínios manuais não são tão requeridos diante das tecnologias disponíveis para tomada, tratamento e criação de imagens, parece retrógrado olhar para procedimentos que requerem cuidados tão elementares, contudo, criar inclui muitos domínios, inclusive estes... 

Selecionei um conjunto de fotografias para trabalhar. Algumas delas foram tomadas por meio de câmara digital na Praia de Coqueiros em Florianópolis - SC, como exemplo, a imagem abaixo:

Foto digital tomada por mim na Praia de Coqueiros em Florianópolis - SC.
Uma paisagem marinha composta por elementos diversos como a água, o céu, as montanhas e as rochas que constituem a vista. O principal problema é a riqueza das cores que dão vida a estas imagens, este foi o primeiro problema a ser enfrentado.
No processo que idealizei, a cor não seria mantida, pois a transposição devia evocar a precariedade das primeiras fotografias, logo converti digitalmente as imagens selecionadas para preto e branco. Com isso surgiu outro problema: como seriam as gamas de cinzas na imagem convertida? Provavelmente, uma gama de cinzas muito extensa não seria respeitada numa reprodução precária. Reduzi então a gama de cinzas por meio de alto-contraste tornando-as mais legíveis, além disso recompus e redimensionei a imagem para dar-lhe um formato mais adequado ao suporte que tinha em mente, cujo resultado é este que se vê abaixo:

A foto digital anterior editada, convertida em P&B, recortada e invertida para transpor.
O processo consiste em realizar a transição da imagem digital, agora manipulada, para o suporte metálico, conforme o proposto. Para tanto é necessário criar uma espécie de matriz. O modo mais fácil é imprimí-la. Considerei que uma inpressora ink jet seria inviável dada a volatividade da tinta e a baixa retenção no suporte escolhido, a opção foi usar impressora a laser. Nesse caso as "matrizes" passaram a ser as imagens impressas em preto e branco e como a ideia era transpor tais imagens para os suportes metálicos elas foram invertidas horizontalmente.

O papel utilizado para impressão foi couchet A4, 75gr. por ter superfície lisa o sufiente para não reter totalmente o toner em suas fibras. Em seguida foi necessário e testar processos que possibilitassem a transferência das imagens do papel para as lâminas de metal.

Defini também que o suporte metálico devia ser algo acessível e disponível no cotidiano sem recorrer a materiais produzidos exclusivamente para esse fim, afinal de contas, como professor defendo um princípio importante que é o reaproveitamento de materiais que, além de livrar o meio ambiente de dejetos desnecessários possibilita o acesso de mais pessoas às experiências expressivas. O conceito de reutilização me levou a buscar um material que preenchesse tais condições. O que melhor atendeu ao processo foi retirar o alumínio das latas empregadas em embalagens de bebidas gazeificadas por ser de fácil obtenção e adaptação atendendo aos propósitos do projeto.

Para usar este material é necessário manipulá-lo: cortar, abrir, estender e alinhá-lo em lâminas. Tudo isso deve ser feito com muito cuidado pois as lâminas são finas e cortantes. Uma tesoura comum pode ser usada para isso sem problema, mesmo tesouras escolares. Depois disso é necessário limpar suas faces pois a parte interna é revestida por uma camada de isolante e a parte externa é impressa. Pode-se fazer isso por meio de polimento usando palha de aço de uso doméstico. É importante que toda a camada de tinta externa ou proteção interna da superfície seja retirada. Para isso pode-se usar também solvente à base de tolueno, comercialmente chamado de thinner. Os cuidados são essenciais, o lixamento deve evitar lesões às mãos e quanto à inalação do vapor do solvente (usar luvas e respiradores). Feito isso, obtêm-se uma superfície brilhante que irá receber com facilidade a imagem.

Placa metálica e matriz para trnasposição.
Entretanto como a ideia era a de manter a aparência da imagem próxima a da primeira fotografia, a superfície brilhante não seria a melhor opção. Assim me propus a explorar outros recursos como texturas e oxidação. Lixar em diagonal a superfície atendeu em parte ao proposto, mas o melhor resultado foi obtido com a submissão das placas em banho com solução de hidróxido de sódio, conhecido como soda cáustica (cuidado com isso, não se pode inalar nem tocar). Uma solução básica é uma colher de café numa xícara de água. Isso faz com que a superfície da placa fique fosca e homogênea. Banhos mais longos nesse processo provocam variações e oxidações irregulares e interessantes nas superfícies que podem ser usadas como base para as imagens a serem transpostas. Estes procedimentos devem ser feitos com muito cuidado pois o produto é lesivo à pele e ao sistema respiratório. Crianças e pessoas não habilitadas a trabalhos manuais não devem tentar realizar esses processos, pois correm risco de acidentes.

Oxidação com soda caústica.
O passo seguinte é transpor a imagem impressa do papel para o metal. Considerando a proposta de não usar os sensibilizantes comuns da química fotográfica ou da serigrafia, tive que buscar soluções que recorressem a produtos e recursos do cotidiano. Por meio da Rede Mundial de Computadores foi possível encontrar alguns procedimentos de transposição deste tipo de imagem, no entanto, nenhum deles se referia à transposição para superfícies de metal. A maioria fala de “transfers”, ou seja, de transferências imagens obtidas por meio de impressoras a jato de tinta para superfícies mais porosas como tecido, madeira, papel ou papelão.

Fixando a imagem do papel para a placa de alumínio por meio de calor, com ferro elétrico.
Experimentei dois processos: um recorre ao calor e outro aos solventes.
A transferência térmica é adequada, considerando que o sistema de produção de cópias a laser se baseia nele, é termográfico, usa o calor para fundir o tonner no papel. Para transpor a face da imagem deve ser colocada em contato direto com a superfície metálica e sobre ela pode-se colocar um ferro elétrico em temperatura alta (de preferência sem vapor), assim o toner é “colado” do papel para a chapa metálica por meio do calor.

Fixando a imagem na placa metálica por meio de solvente usando um rodo plástico.
O segundo processo utiliza solventes. O mais acessível, menos nocivo e comum é a acetona, um produto encontrado no comércio de cosméticos, normalmente usado como solvente para esmaltes de unha. Basta colocar a face da imagem em contato direto com a superfície metálica  e  molhar as costas do papel com a acetona, pressionar com alguma lâmina suave e a imagems será colada na superfície. Esse mesmo processo pode ser feito com tolueno/thinner com o mesmo resultado, mas cuidado para evitar danos às mãos e à respiração, (lembrar de usar luvas e máscaras).

Molhando o papel para dissolver a celulose.
O passo seguinte é retirar o papel sem interferir na imagem. Para isso basta molhar o papel aspergindo água em sua superfície ou mergulhar a placa com o papel em água, com isso a celulose amolece e, aos poucos, se desintegra, assim o processo de descolamento é realizado. No entanto nem toda celulose sai, é necessário friccionar levemente a superfície com os dedos e, aos poucos, a imagem transferida surgirá.


Retirando o papel da superfície da placa.
Retirando o excesso de celulose da placa.
Como o processo é rudimentar nem sempre a transposição é nítida como uma fotografia, é justamente esta precariedade que interessa. Há imperfeições e interferências físicas como bolhas, rasuras, fragmentações, alterações tonais e manchas sobre as quais não se tem controle, logo, essas imagens são instáveis. No entanto, essa precariedade, ao contrário de ser um defeito é exatamente isso que se quer: obter imagens à semelhanca das primeiras fotografias, pois os defeitos, ao invés de prejudicá-lassão  elementos de distinção. Essas interveniências  inesperadas, inusitadas se tornam interessantes ao serem incorporadas às imagens e passam a intensificar suas características e ampliam seu sentido de individualidade e personalidade, assim, cada imagem se torna um original e não mais uma simples cópia.

Uma versão em alto-contraste, com suporte liso.
Depois do processo completo, deixo secar e protejo com verniz fosco que garante acabamento e permanência das imagens nas superfícies metálicas.

Uma versão texturizada, onde o suporte foi polido em sentidos diagonais.
Tenho editado algumas séries por meio desse processo. Embora possam ser numeradas e assinadas não são Gravuras, mas Múltiplos.

Sugiro que, se puderem, criem suas imagens, busquem novas soluções, experimentem o processo e se divirtam...

REFLEXÕES - Arte é para todos?


Grande dúvida: todos têm direito à Arte?

A Última Ceia de Leonardo da Vinci, 1495-98, Afresco na Igreja de Santa Maria delle Grazie, Milão.
Apenas para ilustrar esse texto, trago como exemplo a possibilidade de visita à essa Obra de Arte de Leonardo da Vinci dizendo que custa entre 40 a 50 euros, em reais equivale a 200 e 250 reais aproximadamente. Provavelmente você não poderá ficar mais de vinte minutos no ambiente para não atrapalhar os outros visitantes, turistas ávidos para passar diante dela e dizer: Eu vi a Santa Ceia de Da Vinci! Obviamente Da Vinci nem fazia ideia de que sua obra, ao contrário de ser uma homenagem ao último momento de Cristo junto aos seus discípulos, se tornaria uma das maiores atrações turísticas de Milão. Isso demonstra o deslocamento de bens culturais para exploração comercial turística ou de reproduções é uma das estratégias utilizadas por vários museus, instituições pelo mundo afora para angariar fundos. Por um lado pode se defender que os valores arrecadados são destinados à conservação desses bens, mas, por outro lado, parece exploração pura e simples.

Ao longo do tempo vimos as manifestações da Arte Visual assumirem diferentes posturas na sociedade: fossem como aparatos simbólicos e rituais amparando a existência dos primeiros seres humanos ou como um meio de distinção e enaltecimento dos grupos detentores do poder.
Como seres humanos fomos dotados de capacidade criadora e criativa, nesse sentido, é possível partir da premissa de que todos podem produzir Obras de Arte, mas também está claro que, embora todos tenham a possibilidade de produzí-la nem todos tem acesso a ela.

A Arte Visual surge espontaneamente como uma tentativa de exercer o domínio sobre o meio ambiente e sobre as coisas das quais necessitava para garantir sua sobrevivência, logo, Arte não era feita pelo prazer estético ou para ornamentar cavernas, mas para garantir sua existência, dar-lhes esperança de mais um dia, um mês, quem sabe um ano ou dez...

As manifestações artísticas estavam tão impregnadas em sua vida, ao seu dia a dia que Arte e realidade não se distinguiam uma da outra. Nesse sentido a Arte era algo integrado à vidas daqueles seres humanos de tal modo que não havia qualquer necessidade de identificar o que era Arte do que era realidade (no sentido conceitual e não pragmático).

Ao passo que as civilizações foram se desenvolvendo a Arte passa a ser utilizadas não mais como uma forma de propiciar sua manutenção, mas como um meio de narrar, contar histórias, ocorrências e eventos de nações, seus mitos e heróis, com isso passa a ser também um modo de distinguir, informar , publicizar os feitos dos povos dos grupos dominantes e dos dominadores. Nesse sentido a Arte passa a ser empregada para dar visibilidades aos feitos e efeitos desses grupos e nações.

Grande parte da história ou dos mitos das civilizações da Antiguidade chegou até hoje por meio das representações visuais incorporadas às edificações dos templos, túmulos e palácios. Mais tarde, no período Moderno, pelas obras financiadas pelos príncipes, religiosos, comerciantes e líderes políticos que passaram a usar a Arte como meio de distinção social como manifestação de sua riqueza e poder. Assim surgiram também as grandes coleções de Arte Visual que ainda hoje ocupam boa parte dos museus do mundo.

Na medida em que tais coleções foram sendo criadas, boa parte das obras produzidas nesse período deixaram de ser públicas, não estavam mais disponíveis para a visibilidade no ambiente urbano, mas passaram a ser destinadas à apreciação privada, dentro dos templos, palácios e mansões cujo acesso era restrito à elite dominante.

Ao mesmo tempo, foram criados museus para coletar, armazenar, cuidar e mostrar Obras de Arte e outras coleções de coisas e objetos históricos, antropológicos que pudessem interessar à cultura, à curiosidade ou ao interesse comum ou coletivo. Tais coleções deixaram se ser restritas e passaram a ser públicas, embora muitas delas para serem visitadas exijam a compra de ingressos, ainda é um dos meios que disponibilizam o acesso à elas.

Cobrar um ingresso daqueles que se dispõe a visitar um museu, embora seja um contrassenso, já que a cultura humana deve ser compartilhada com todos, é a forma mais direta de apropriação da cultura como meio de promoção e investimento já que o poder público, em raros momentos, se dispõe a oferecer acesso livre, aberto e irrestrito aos bens culturais.

Nessa mesma linha de raciocínio aqueles que dispõem de poder econômico têm a possibilidade de adquirir Obras de Arte com fins exclusivos de investimento retirando-as também do convívio público. Coleções privadas são constituídas com a intenção de promover o poder de seus proprietários mas, nem sempre, estão abertas à visitação pública.

Boa parte do que se vê ou do que se sabe sobre Arte Visual depende das edições impressas ou das redes sociais nas quais são difundidas as reproduções imagéticas de tais obras, muitas vezes sem que se tenha a noção de sua dimensão, técnicas ou condições ambientais. As reproduções de tais obras dão uma ideia de como as obras são, mas de modo algum correspondem à obra de fato, seja em relação à sua dimensão real, cores, texturas ou aparência ou intervenções decorrentes do desgaste do tempo ou de intervenções que sofreram. São registros parciais, meras ilustrações de algo que é muito maior, mais importante, mais dinâmico e mais forte do que se vê nesses meios.

A falta de hábito de frequentar ambientes dotados de Obras de Arte faz com que fiquemos anestesiados e cada vez mais alienados de nossa própria cultura, de nossos próprios valores e bens culturais. Tudo parece não ter a ver conosco, nada é importante e de nada adianta lutar contra isso.

No fim, vítimas desse processo de alheamento, resta-nos apenas aceitar tais arremedos de Obras de Arte, olhar pequenas janelas nos livros, no monitor das telas de nossos gadgets digitais e nos conformarmos... é esse o direito que temos à cultura que produzimos...

Desculpem-me o lamento, mas vale lembrar que temos o direito ao inconformismo...




REFLEXÕES - Milhões por uma Obra de Arte: ela vale isso?

A relação da Arte com o mercado na atualidade é bastante complexa. é comum vermos "rankings" que listam os valores pelos quais certas obras foram comercializadas e, em geral nos espantamos com cifras astronômicas que atingiram e nos perguntamos: Elas valem isso?

Para as pessoas que estão fora do sistema, do mercado e do contexto da Arte é difícil entender. Como também é difícil entender por que o passe de um jogador de futebol atinge valores estratosféricos só para mudar de time. O mesmo acontece com vários esportes de elite em que personalidades do tenis ou golfe arrecadam milhões para fazerem aquilo que gostam e têm habilidades para fazê-lo. Nesse caso, talvez a pergunta não seja se valem isso, mas por quê valem isso?
Valorar uma Obra de Arte ou a performance de um tenista pode ser difícil e talvez, aquilo que se atribua a uma ou a outro não seja, de fato, realista.
Contudo, esses fenômenos econômicos são comuns no mundo capitalista, então é melhor se acostumar...

Voltando para a questão da Arte e do mercado, pode-se tentar buscar algumas razões ou motivos para explicar por que algumas delas alcançam altos valores. Não é a materialidade da obra como, por exemplo, o suporte, os materiais ou a técnica, nem mesmo a habilidade do artista que determina quanto ela vale.
Há diferenes fatores que podem interferir no valor de uma Obra de Arte. Um deles é a originalidade. Muitas obras trazem informações sobre sua autoria, seu tempo, seu lugar, sobre as circunstâncias sociais, culturais que lhes deram origem e, em geral, são únicas e exclusivas. Nesse caso é comum que sejam altamente valoradas, especialmente as obras do passado que, além do valor artístico ou estético acumulam valor histórico. Nesse caso museus, instituições culturais e mesmo colecionadores privados as supervalorizam por razões como estas ou como potencial investimento.

Um exemplo que atende a estas razões é a obra de Leonardo Da Vinci: "Salvator Mundi", produzida entre 1490-1519, foi vendida pela Christie´s em NY, por U$ 450.000.000,00, em 2017, o maior valor já pago por uma Obra de Arte.




O "recorde" anterior havia sido atingido por uma obra de Pablo Picasso, "As Mulheres de Argel, versão 0", de 1954-55, vendida pela mesma Christie´s por US$ 179.00.000,00 em 2015.


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A obra de Picasso é uma releitura Cubista de uma obra original, de mesmo nome, produzida por Eugène Delacroix, em 1834, que entre 1847-49 pintou mais duas versões desse tema, todas em museus oficiais na França.


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É comum que essas obras, por terem sido produzidas no passado e seus autores não existirem mais também sejam muito valoradas. Normalmente obras desse tipo se encontram em instituições como museus ou em coleções particulares que podem ou não vendê-las. Nesse caso são vendidas em algumas situações: para fazer frente às despesas institucionais; para aquisição de novas obras ou para realizar lucros quando se trata de coleções particulares. Quando essas obras saem da esfera pública e entram na esfera privada vão constituir coleções particulares, às vezes são apenas embaladas e armazenadas, praticamente, nunca mais são vistas e só entram de novo no mercado para realizar investimentos, transformar passivos em ativos financeiros auferindo lucros substanciais.
No caso da obra de Da Vinci, acima indicada, estava na posse de um colecionador russo e passou para a posse de um colecionador árabe e, segundo dizem, faz parte da decoração de seu iate particular... Especulação??? Demonstração de poder??? Ignorância??? Quem sabe o que passa nessas cabeças...

Contudo, não é o valor cultural ou histórico que, em boa parte das vezes, determina os altos valores pagos a certas obras. São, em geral, aquelas que caem nas graças do mercado que vislumbra a possibilidade de especulação e ampliação de capital seja para aquecer valores de origens pouco louváveis ou simplesmente para realizar investimentos.

O que movimenta esse mercado, constituído pelas galerias, casas de leilões e especuladores, chamado de mercado secundário são essas instituições comerciais e financeiras que investem pesado na promoção de eventos e mediatização de Obras de Arte para transformá-las em âncoras de investimento onde se aportam valores altíssimos para que sejam realizados mais tarde. Tais obras se parecem então como títulos ao portador... Em geral tais obras não pertencem mais aos artistas ou herdeiros, assim são passíveis de especulação financeira sem restrições, sem falar no mercado negro que opera no submundo.

O mercado primário é o que lida com a aquisição direta do artista para o sistema de galerias, colecionadores e instituições de arte. A maior parte das obras produzidas pelos artistas é destinada ao mercado primário, sejam comercializadas por eles próprios ou por marchands, galerias ou seus representantes que auferem comissões ou participação nas vendas. É comum que o artista receba o menor valor dentro desse sistema e o mercado secundário o que mais lucre com tais obras.

Sim! Isso é perverso...

Além de perverso, é justamente o mercado secundário que manipula, define, inflaciona e supervaloriza tais obras fazendo estardalhaço na mídia e o público que, coitado, nem sabe o que está acontecendo. A maioria imagina que os artistas são riquíssimos, logo, ser artista é uma opção milionária. Contudo é bom ponderar: nem todos são Hirsts, Cattelans ou Koons, assim como nem todos são Cristianos Ronaldos, Messes, Nadais ou Federeres, mas a ilusão continua...

Falando nisso, há artistas contemporâneos que atingem também cifras elevadas por suas obras, em geral, aqueles que já foram consagrados pelo mercado secundário. Mesmo assim, alguns deles conseguem bons valores por suas obras no mercado primário, um fenômeno contemporâneo.
Pode-se dizer que este fenômeno teve início nas décadas de 1960-70 do século passado com manifestações da chamada Pop Art. Esta tendência foi, a meu ver, o pontapé inicial para o processo de super-valorização de artistas vivos... antes, era praticamente impossível isso acontecer.

Um dos fatores que facilitou esse fenômeno foi o diálogo da Arte com o Consumo, especialmente inaugurado no pós-Segunda Guerra em que o afã pela produção e consumo se expandiu, especialmente, nos Estados Unidos. Outro fator foi a visibilidade e difusão das propostas Pop através da mídia e da comunicaçao de massa. Assim artistas que adotaram um diálogo direto com a indústria e a mídia se tornaram celebridades e, por consequência, passaram a ser tomados como mitos vivos...

Um bom exemplo desse tipo de conduta é Andy Wharol que sintetizou muito bem esse processo: ele se apropriava de valores já difundidos e conhecidos mediante a difusão da mídia e lhes dava um tratamento visual ou os inseria no sistema de arte transformando-os em "objetos de desejo" da recém classe dominante e funcionou...

Não é por acaso que algumas de suas obras mais conhecidas tomem como referências imagens da mídia e do mercado:

Coca Cola, 1962, MoMA, NY.
Soup Campbells Can - Beef, 1965. 

Marilyn Monroe, 1967, MoMA, NY.
Eight Elvises, 1963. Teve o maior valor de suas obras, vendido por US$ 143,3 milhões de dólares em 2008.

Seu estúdio em NY, batizado "simbolicamente" de "The Factory", dialogava com o desenvolvimento industrial e comunicacional de massa que se expandía naquela época. Mudava o conceito de ateliê para oficina. Deixa de ser aquele artista lírico que detinha domínios cognitivos e habilidades motoras para idealizar e realizar suas obras, se torna o gestor de uma empresa liderando equipes de assistentes e prestadores de serviço para a produção e realização de objetos em larga escala, como múltiplos, que seriam colocados diretamente no mercado, podendo até dispensar o mercado secundário.

Esse exemplo foi seguido por artistas contemporâneos como Jeff Koons e Damien Hirst entre outros que estabeleceram grandes oficinas, empregam vários assistentes e desenvolvem várias linhas de pesquisa em arte produzindo obras de grande porte e alta tecnologia comparando-se às indústrias High Tech da atualidade. Mobilizam e detém sobre eles os holofotes da mídia e do mercado secundário ávido por colocar suas obras nas coleções particulares e museus de todo mundo. Um fenômeno que atinge poucos...

O melhor exemplo deste tipo de comportamento foi a realização da última exposição de Damien Hirst, em 2017, batizada de "Treasures from the Wreck of the Unbelievable" realizada em Veneza ocupando dois ambientes expositivos. Mostra 189 peças pertencentes a Cif Amotan II, escravo liberto que viveu entre os séculos I e II, na Turquia e acumulou uma fortuna imensurável em obras de arte. O navio que as transportava naufragou na costa da África. Somente nos últimos anos, uma expedição marinha, financiada por Hirst, pode resgatar todas as obras.

Linda história, pena que não é real...

Hirst idealiza e realiza esta fantástica saga, produz as obras e as mergulha no fundo do mar. O resgate é feito por uma equipe de pesquisadores e arqueólogos oceanográficos amplamente documentada por fotos e filmes submarinos de alta qualidade e convencimento. O filme "documentário" do resgate está disponível e pode ser visto no Netflix. Hirst dialoga com o conceito de verdade e mentira, mito e realidade. Algo que faz bem e que orienta boa parte de sua produção artística.
Figuras conhecidas do mundo Pop como Kate Moss, Rihanna, Pharrell Willians, Mickey, Pateta, Barby e o próprio Hirst se tornam personagens escultóricos nessa história. Estima-se que o investimento para toda a produção das obras, do filme e da saga completa, inclusive os dois espaços expositivos: o Palazio Grazzi e o Punta della Dogana em Veneza, esteve na casa dos 200 milhões de reais, o que não importou muito pois as vendas alcançaram mais de 500 milhões de reais... sem intermediários, pois ele dispensou seus representantes habituais...

O rosto da top Kate Moss é a inspiração para a bela deusa egípcia  (Foto: Divulgação)   Rihanna virou rainha do Egito pelas mãos de Damien Hirst  (Foto: Divulgação)  Um faraó com mamilo de diamante e o rosto do rapper americano Pharell Williams é uma das peças da exposição (Foto: Divulgação)   Imagem relacionada
Kate Moss, Rihanna, Pharrel Willians e o próprio Damien Hirst acompanhado de Mickey são parte das esculturas "resgatadas" pela expedição e mostradas na exposição.

Mesmo artistas "Marginais" como Banksy, que usa o grafite como intevenção urbana, é envolvido nesse processo de supervalorização. Banksy ficou famoso por realizar suas intervenções urbanas críticas e de modo anônimo, ninguém sabia que era ele. Tornou-se, praticamente um mito urbano. Isso fez com que colecionadores pagassem somas elevadas para cortar paredes, retirar tapumes onde o artista havia realizado suas intervenções e, consequentemente, mercantilizá-las. Uma das últimas ações foi a "destruição" de uma de suas obras "ao vivo" num leilão da Sotheby´s londrina.
Uma peça de um de seus grafites "Menina com Balão" foi emoldurada e colocada em oferta por um colecionador anônimo. Durante o leilão a obra atingiu o lance final de aproximadamente cinco milhões de reais. No momento em que o leiloeiro bate o martelo, a tela começa a deslizar para fora da moldura sendo cortada em tiras, destruindo-a parcialmente. Ao que parece, a ideia original era que a obra fosse totalmente fragmentada, no entanto, por qualquer motivo a fragmentação foi interrompida e parte ficou inteira dentro da moldura e parte ficou fragmentada e para fora dela.



Duas imagens da obra de Banksy: quando inteira e depois semi-destruída. O título: "Menina com Balão" foi mudado para "O Amor está no Lixo"...

O mais espantoso é que a pessoa que havia dado o lance arrematador, o manteve e honrou sua compra, mesmo a casa leiloeira estando disposta a anular a venda pelo simples fato da obra ter quase se auto destruído. Mas isso, conforme o adquirente, atribui mais valor à obra e não o contrário... coisas do mercado especulativo...

Não me espantaria também se, mesmo que a fragmentação chegasse ao fim, o comprador honrasse sua compra mantendo, quem sabe, sobre sua lareira a moldura vazia e no espaldar os fragmentos da tela... Algo típico desse mercado especulativo e exibicionista que usa a Arte para distinção social.

No contexto social há dois olhares contraditórios sobre os artistas: se ele consegue atuar com eficiência no mercado, diz-se que é um oportunista, um mercenário e o outro contrário, espera-se que ele seja desprendido, altruísta, despretensioso, pois a arte não tem preço... Ledo engano, se o artista pode ser altruísta, o mercado não é nem nunca será! Ele sempre dirá quanto vale o que ele quer que valha.

Contemporaneamente a produção artística atingiu níveis muito elevados, talvez, resguardadas as devidas proporções, se produza tanto quanto se produziu no Renascimento. Contudo o excesso de produção não significa uma reversão equitativa para aqueles que a produzem, a não ser para alguns poucos privilegiados pela sorte, habilidade ou marketing, coisas do capitalismo...

Todos têm o direito de viver de seu trabalho, seja em que campo for, mesmo o de Arte... Lamentavelmente no contexto da cultura têm-se a ideia de que se vive de vocação, de hobby, do simples prazer de fazer o que se gosta e não o que se precisa para se manter como indivíduo e ter o respeito que todos os seres humanos merecem. A inversão de valores que o liberalismo econômico e predatório instaura afeta todos os segmentos e também refreia, se apropria e manipula o contexto artístico e cultural. Um mundo consumista não pode ter identidade...

Enfim o que, quanto e por que uma dada obra vale o que vale nesse contexto, nem sempre terá explicações claras, consistentes ou verificáveis. Se busca o tempo todo justificativas para explicar ou simplesmente entender os fenômenos sociais, de mercado ou culturais, mas uma coisa é certa: a Arte não morreu... continua viva e, mesmo reprimida pelo jugo do mercado, permanece ativa...

Fazer Arte ainda é uma atividade essencialmente humana, independente dos fins dados a ela, continua ampliando o diálogo com a existência.

Agradeço a leitura e peço o compartilhamento, obrigado.



REFLEXÕES - Arte: fazer ou não? Eis a questão!

Primeiramente quero esclarecer que nesse texto tomei a liberdade de me apropriar de imagens do trabalho de Artistas com os quais compartilho a amizade: alguns colegas de formação, outros com os quais trabalhei e trabalho e alguns que foram estudantes que convivi em períodos de formação, aqui presto-lhes uma grata homenagem e já me desculpo com aqueles que não consegui localizar na www. Quebro os parágrafos mas os intercalo com momentos de apreciação e prazer...


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Waldomino Santanna, Janela 1977.  https://www.waldomirosantanna.com.br/
Os dois últimos textos que publiquei recentemente: Arte para que? e Para que fazer Arte? Levaram alguns amigos artistas a ponderar à respeito desse assunto o que me estimulou a refletir um pouco mais sobre algumas questões que permearam os dois textos que são o Fazer Arte e o Apreciar Arte. Por isso volto novamente ao tema e espero que mais pessoas possam refletir à respeito. Para tanto vou levantar algumas questões para melhor explicar minha linha de raciocínio.


Létícia Marquez, "1° Selo da Série Apocalipse, 6-1,2".
 https://www.facebook.com/pages/category/Artist/Let%C3%ADcia-Marquez-353880538073117/
A primeira pergunta que me vem à mente é: O que você faz para viver faz você feliz? Se a sua resposta for afirmativa, eu me congratulo com você e lhe digo que tomou uma ótima decisão em sua vida por fazer algo que lhe traz prazer além do sustento.
Por outro lado, se a resposta for negativa há um problema e problema é para ser resolvido, não é?


Imagem representativa do artigo
Pama Loiola, série Peruaçú N°40, 1995. http://pamaloiola.blogspot.com/

Antes disso é preciso distinguir uma coisa, o que fazemos profissionalmente, mesmo que seja Arte, é Trabalho. Originariamente trabalho eram as ações empreendidas pelos seres humanos para proverem sua manutenção e existência, logo, a coleta, a caça, vai se transformando para a confecção de ferramentas, instrumentos e utilitários necessários à sua sobrevivência, dai a classificação de Homo Faber identifica o momento em que o ser humano toma consciência de sua capacidade de transformar o entorno em seu benefício superando o Homo Sapiens que tem apenas consciência de sua existência. De simples coletor para o criador é uma passagem grandiosa para o desenvolvimento humano, com boas e péssimas consequências.


Fernando Augusto dos Santos Neto, Série Desenhos Amazônicos,
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8750/fernando-augusto

Obviamente, o trabalho visto pela ótica do mercado e do capitalismo é uma atividade que visa o ganho ou a remuneração em substituição às ações primárias da humanidade que eram destinadas exclusivamente à sua sobrevivência. A idéia de mercado e capitalismo inclui a exploração da natureza, da mão de obra, da tecnologia e das inteligências dedicando-as apenas a ele mesmo e não ao ser humano como merecedor do desenvolvimento, mas como um consumidor de produtos, bens e serviços. Como não sou economista, intuo que para o tempo atual o trabalho é algo que intermedia o capital e o consumo, ou seja o mercado...

Imagem relacionada
Danillo Gimenes Villa, "P.S." (Paisagem e Superfície). http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa278414/danillo-villa
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Udhi Jozzolino. https://www.artmajeur.com/pt/udhi-jozzolino/artworks/1406225/obra-2

Nessa linha de raciocínio, o trabalho pode ser visto sob duas óticas: uma é como viam os gregos e romanos, de um lado o trabalho Criador (Opus) e de outro o trabalho Braçal (Labor). Um digno e elevado e outro indigno e pesado. Isso ainda acontece fazendo com que as atividades mais básicas da sociedade sejam mal remuneradas e as mais elitizadas sejam melhor remuneradas, basta comparar um trabalhador braçal de qualquer área com o de um gerente de empresa, de que campo for, que obviamente o gerente será sempre melhor remunerado, independente do esforço físico ou mental que um e outro dispensem na execução dele.


Elke Coelho, Chuva. 

Vale atentar para a existência de uma terceira vertente não prevista pelos gregos e romanos: a ação de uma entidade que não se encaixa em um ou outro, mas manipula um e outro. Essa entidade que rege a manipulação dessas duas vertentes, por falta de melhor classificação, pode ser reconhecida como capitalismo, cujas ações são operadas por indivíduos, corporações ou nações que, por um motivo ou outro: mérito ou apropriação, se colocaram acima de tudo, pactuando e reprimindo os demais.


Rogério Ghomes, LDA, CWB // 379KM, 4H46MINhttp://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa10570/rogerio-ghomes

Aqui posso voltar à questão do Fazer da Arte. Nos textos anteriores admiti que Fazer Arte é uma atitude volitiva empreendida por pessoas que têm motivações pessoais, subjetivas ou simbólicas que as leva a praticar, exercitar, criar coisas que revelem significados, sentidos ou significações de caráter estético. Um fazer, um trabalho de fato que reúne, ao mesmo tempo, o Opus e o Labor na constituição de Obras de Arte que podem ou não ter fim em si mesmas ou serem intercambiadas, compartilhadas e dispostas à apreciação dos demais. O que não as exime também de serem captadas ou cooptadas pelo sistema e, com isso, atuarem no universo mercantil.


Eva
Priscilla Pessoa, Eva, 2018.  https://www.priscillapessoa.com/a-artista
Posso dizer com segurança que a maioria dos artistas que produzem/fazem Arte, fazem por prazer, por amor, por motivos subjetivos, individuais, simbólicos ou pessoais, mas não com fim único e exclusivamente mercantil.
Aqui vocês podem me contestar e dizer: Mas os artistas que vendem suas obras por milhões, eles também são desinteressados?
Nesse caso, tais artistas, uma minoria absoluta no mundo atual, tiveram o privilégio, a sorte ou a estratégia de serem agraciados pelo mercado ou pelo marketing e terem suas obras supervalorizadas e, nem todos, auferem os valores diretos desses milhões, a maior parte vai para investidores e especuladores constituídos pelas grandes cadas de leilões, marchands e capitalistas, embora uma aura de sucesso permaneça em torno deles e os mantenha em alta fazendo com que suas obras sejam, além de Arte, bons negócios.


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Rafael Duailibi Maldonado, Ornamento, 2000. http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa23292/rafael-maldonado

Posso dizer, também com segurança, que nenhum artista é desinteressado, a questão é entender que tipo de interesse o move. Alguns tem seu próprio interesse, seu prazer ou gosto e por isso fazem Arte, outros confiam que em algum momento possam ser reconhecidos e recompensados pelo seu trabalho pelo mercado, o que não é um mal em si, mas de difícil conquista, especialmente se levarmos em conta que as habilidades dos artistas estão focadas no fazer e não no vender. Mas todos eles, independente da finalidade com que criam, investem muito (intelectual, material, performática e pragmaticamente) nesse fazer e é justo serem, no mínimo, respeitados e reconhecidos por isso.


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Sérgio Bonilha, Depois das Ilhas, 2000.  http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa426014/sergio-bonilha

Agora posso voltar à questão do Apreciar Arte. O Apreciar normalmente é relacionado a valores como gostar, aceitar e, dada à tradição clássica acadêmica, pode ser associada à ideia de beleza, harmonia, ao agradável e ao ornamental vinculada ao gosto reinante num dado momento, e que ainda não é totalmente ignorado hoje em dia, muitas obras ainda atendem à essas funções.

Taís Cabral, sem título.
Regina Menezes, 2019. http://reginamenezes.com/2019/02/08/primeiras-gravuras-de-2019/

Pode-se dizer que, ao longo do tempo, muitas Obras de Arte atuaram em muitos desses universos qualitativos, contudo hoje em dia a Arte é mais autônoma e propositiva e, para apreciá-la, temos que levar em conta vários outros fatores como o próprio conhecimento sobre ela, as provocações que realiza e o desafio para identificar questões que intemediam as relações entre ela e o mundo atual, logo, Apreciar se relaciona a entender, buscar e descobrir sentidos e significados que, muitas vezes, não estão explícitos e diretamente revelados pela obra em si, mas relacionados às condicionantes do contexto artístico e social do qual faz parte.


Constança Lucas, Tocamos o Mistério, 2018.  http://constancalucas.blogspot.com/

Um ponto relevante é entender que a Arte atual não se preocupa tanto em Representar algo mas em Apresentar algo e, ao Apresentar nos desafia, nos leva a pensar e nos provoca, convoca à reflexão em busca das significações possíveis.
No senso comum corre a ideia de que a Arte atual é incompreensível, provocativa e agressiva, que denigre e ignora toda a tradição canônica clássica e, por isso, não é digna de ser considerada.
É fato que se opõe à tradição, mas não a ignora nem a denigre. Ser incompreensível é um aspecto que está mais ligado à precariedade da formação educacional e cultural à qual se está submetido do que um problema da Arte. Também é fato que é provocativa, esse é o primado propositivo das poéticas contemporâneas, instigar as pessoas ao diálogo, ao desvendar, encontrar sentidos e não dá-los "de mão beijada" como as narrativas temáticas do passado. Agressiva, de fato, muitas obras recorrem ao próprio sistema ao qual estamos sujeitos enquanto sociedade que pratica a insegurança, o desrespeito à divesidade, aos gêneros, às etnias, aos mais fracos, desvalidos e ignorados pelo sistema dominante, se isso é ser agressiva, desculpem-me, em que mundo estamos?

Fábulas caseiras
Patrícia Osses, Verde e Violeta, 2008. http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa211973/patricia-osses

Agora, finalmente, volto à felicidade. O conceito de trabalho, de um modo ou de outro, se contrapõe ao de Lazer, ou seja, à busca da felicidade, de um ponto de equilíbrio em que àqueles que estão sujeitos à faina diária e desprazerosa do trabalho compulsório e, às vezes, compulsivo, tem uma válvula de escape que é um momento de curtir, de fazer algo interessante, desestressante, prazeroso constituído por atividades que o distraiam e o reequilibrem para sobreviverem mais um dia, uma semana, um mês, ano a ano. Folgas, Feriados, Férias são os contrapontos do trabalho, momentos em que se pode descontrair e esquecer por alguns momentos o ambiente depressivo, o chefe prepotenre, os colegas neuróticos, os clientes exigentes, enfim tudo aquilo que representa o contexto executivo e que está compulsoriamente ligado às atividades trabalhistas ou trabalhosas. Nesse sentido, nem sempre o trabalho está associado ao prazer e à felicidade.

José Antonio de Lima, Casulos, https://www.joseantoniodelima.com/

Imagem representativa do artigo
Fernanda Magalhães. http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa10721/fernanda-magalhaes

Nesse ponto é que o Fazer da Arte está, de um modo ou de outro, associado a este contexto de prazer e de felicidade. Um artistas faz o que faz porque se sente bem. Mesmo que para fazer Arte tenha que se submeter a atividades paralelas que nem sempre lhe dão prazer, há adiante um "porto seguro" no qual pode aportar nos momentos em que a realidade pesa, a Arte eleva e enleva, equilibra e faz o contrapeso do mundo...

Reberson Alexandre - São Jorge 01
Reberson Alexandre, São Jorge 01. https://www.behance.net/reberson_alexandre

Sejam felizes, façam ou apreciem Arte, sua alma agradece...

"Grandes amigos", micro escultura de madeira / 13x10.1x7.2cm
Aldo Torres Nunes, Grandes Amigos.

Como adiantei, nesse texto tomei a liberdade de me apropriar de imagens do TRABALHO de Artistas que, a despeito de tudo, continuam FAZENDO Arte e nos dão o prazer e a felicidade de contar com seus olhares para tornar esse mundo mais sensível e mais feliz.

Agradeço a leitura e peço o compartilhamento.