POÉTICA PROPOSITIVA: O caso da Transposição Fotográfica.

Transposição Fotográfica: Imagens em Trânsito.

A ideia de Imagens em Trânsito aborda a questão da passagem de uma imagem de um lugar para outro, ou seja, sua transposição por meio de procedimentos técnicos. Nesse sentido não me refiro às aprensões visuais realizadas sobre o mundo configuradas como desenhos, pinturas, esculturas, mas aos processos de reprodução de imagens, ou seja, os modos como uma imagem é transferida de um lugar para outro, para isso tomo a fotografia como referência.

É possível supor que a primeira reprodução de uma imagem pode ter surgido quando o ser humano, na pré-história, percebeu que era possível impor as marcas de suas próprias mãos, borradas de pigmento, numa superfície qualquer ou antes disso, percebido as marcas de seus próprios passos no solo, ou ainda o rastro dos animais que perseguia. Imprimir, decalcar, pressionar as mãos, coisas e objetos sobre superfícies moldáveis ou maleáveis, como a argila por exemplo, resultavam em reproduções semelhantes àquilo que as gerava, uma matriz aleatória ou casual era capaz de criar uma imagem à semelhança de sua origem.

Isso pode ter causado uma espécie de encantamento, deslumbramento. Descobrir a possibilidade de replicar imagens é fantástico. Penso que este foi o momento zero, o ponto original dos processos de reprodução de imagens, de lá para cá surgiram as gravuras, as fotografia, prensas, matrizes, formas, múltiplos e os demais processos reprodução e estamparia disponíveis hoje em dia.

Nesse meio tempo a fotografia aparece. Embora ela tenha se consagrado como um meio de registro de imagens tomadas do meio ambiente por meio da luz, surgiu justamente a partir das muitas tentativas para reproduzir imagens.
Um dos principais marcos dessas investigações foram as experiências de Joseph Nicephore-Niepce, na França, na década de 20 do século XIX que abriram dois caminhos distintos: um que possibilitou tomar imagens diretamente do meio ambiente sem intervenção da mão humana -a fotografia- e outro que possibilitou a reprodução imagens amparando o desenvolvimento dos processos gráficos fotomecânicos -a imprensa- que, até hoje, suporta o mundo editorial.

Joseph Nicephore-Niepce, Imagem gravada por meio da luz em superfície metálica, reconhecida como a primeira Fotografia, França, 1824-27.
A fotografia deu à humanidade a possibilidade de registrar o entorno, os eventos, acontecimentos e documentar seu percurso construindo uma memória visual rica e grandiosa sem que fosse necessário desenvolver habilidades cognitivas e manuais para isso. Contudo essa memória não teria sentido se não fosse difundida, distribuída, assim os processos de reprodução também contribuíram para que essa memória se tornasse um dos patrimônios mais ricos da humanidade.

O percurso temporal de quase dois séculos desde o surgimento da fotografia no século XIX, sua consolidação no século XX e sua expansão no século XXI expõe mudanças substanciais, tanto em relação aos aspectos técnicos e tecnológicos quanto histórico/conceituais das imagens em geral e, em particular, das fotográficas.
Nesse mesmo período de tempo a tecnologia analógica foi transplantada para os computadores em seus programas e periféricos e muitas imagens passaram do meio ambiente para o suporte físico ou analógico e depois digital. Hoje em dia produzir ou reproduzir imagens não é mais um “bicho de sete cabeças”, mas um recurso acessível tanto para aqueles que entendem a fotografia como meio documental  quanto os que a adotam como meio expressivo.

Os aparatos digitais disponíveis na atualidade facilitam muito a captação, transformação e reprodução de imagens. Processos e recursos de alta tecnologia são capazes de produzir registros e mesmo criar imagens de alta qualidade visual e também de reproduzí-las com grande qualidade e eficiência.

Nesse sentido a facilidade com que são captadas, manipuladas, transfomadas e usadas as imagens na contemporaneidade acaba contribuindo para que sua importância reduza na razão direta de sua expansão tecnológica. Por outro lado, a produção em massa de imagens tem sido um estímulo para que as pessoas e, principalmente, os artistas invistam nas pesquisas híbridas relacionando processos tradicionais e novas tecnologias e, ao mesmo tempo, busquem processos alternativos, criativos que possam estabelecer novas relações com as imagens e seus apreciadores, usuários.

Seguindo essa linha de raciocínio passei a refletir sobre a possibilidade de desenvolver uma série baseada na reprodução/transposição de imagens, para isso recorri a dois caminhos: um foi o acervo pessoal de fotografias que produzi durante os anos que residi em Florianópolis. Naquele período realizei fotografias de paisagens da ilha, publicadas diariamente em rede, numa série que batizei de “Uma foto por dia”. Portanto, tinha à disposição um bom número de fotos digitais, por isso considerei recorrer a elas para o desenvolvimento desse novo projeto poético. O segundo caminho foi desenvolver a artesania necessária para a transposição daquelas imagens para suportes menos convencionais. Assim a proposição consistia na busca de meios e/ou processos alternativos para trabalhá-las.

Tomando por base a trajetória de tomada e reprodução das imagens ao longo do tempo é fácil perceber que os processos evoluíram a ponto de, hoje em dia, a maioria delas residir em arquivos digitais e, para serem vistas, devem ser convertidas para monitores, projetores ou impressas em meios físicos. Nesse caso não me interessava recorrer à impressoras convencionais ou de alta performance para imprimí-las em papéis de alta qualidade ou metacrilato, consideranto as últimas tecnologias de impressão de imagens fotográficas.

Pensei em quebrar essa lógica e o que me veio à mente para ploblematizar essa questão foi homenagear o processo realizado por Nicephore-Niepce, quando conseguiu obter imagens por meio do trasladamento da luz ambiente para placas metálicas, nesse caso, poderia evocar os primeiros tempos das imagens fotográficas tomando como referencial a precariedade com que elas eram realizadas e a interferência de seus suportes. Decidi transpor as imagens para placas metálicas.

O principal objetivo era experimentar meios e abordagens mais pragmáticas que possibilitassem variações e intervenções sobre a imagem durante o processo. Assim me dispus a buscar materiais e meios alternativos facilmente acessíveis que, além de seu aspecto plástico tivessem potencial didático para serem usados também em ambientes de ensino. Nesse processo de transposição de imagens há duas questões que evocam os procedimentos artísticos tradicionais: o domínio de habilidades artesanais e técnicas. Num mundo em que domínios manuais não são tão requeridos diante das tecnologias disponíveis para tomada, tratamento e criação de imagens, parece retrógrado olhar para procedimentos que requerem cuidados tão elementares, contudo, criar inclui muitos domínios, inclusive estes... 

Selecionei um conjunto de fotografias para trabalhar. Algumas delas foram tomadas por meio de câmara digital na Praia de Coqueiros em Florianópolis - SC, como exemplo, a imagem abaixo:

Foto digital tomada por mim na Praia de Coqueiros em Florianópolis - SC.
Uma paisagem marinha composta por elementos diversos como a água, o céu, as montanhas e as rochas que constituem a vista. O principal problema é a riqueza das cores que dão vida a estas imagens, este foi o primeiro problema a ser enfrentado.
No processo que idealizei, a cor não seria mantida, pois a transposição devia evocar a precariedade das primeiras fotografias, logo converti digitalmente as imagens selecionadas para preto e branco. Com isso surgiu outro problema: como seriam as gamas de cinzas na imagem convertida? Provavelmente, uma gama de cinzas muito extensa não seria respeitada numa reprodução precária. Reduzi então a gama de cinzas por meio de alto-contraste tornando-as mais legíveis, além disso recompus e redimensionei a imagem para dar-lhe um formato mais adequado ao suporte que tinha em mente, cujo resultado é este que se vê abaixo:

A foto digital anterior editada, convertida em P&B, recortada e invertida para transpor.
O processo consiste em realizar a transição da imagem digital, agora manipulada, para o suporte metálico, conforme o proposto. Para tanto é necessário criar uma espécie de matriz. O modo mais fácil é imprimí-la. Considerei que uma inpressora ink jet seria inviável dada a volatividade da tinta e a baixa retenção no suporte escolhido, a opção foi usar impressora a laser. Nesse caso as "matrizes" passaram a ser as imagens impressas em preto e branco e como a ideia era transpor tais imagens para os suportes metálicos elas foram invertidas horizontalmente.

O papel utilizado para impressão foi couchet A4, 75gr. por ter superfície lisa o sufiente para não reter totalmente o toner em suas fibras. Em seguida foi necessário e testar processos que possibilitassem a transferência das imagens do papel para as lâminas de metal.

Defini também que o suporte metálico devia ser algo acessível e disponível no cotidiano sem recorrer a materiais produzidos exclusivamente para esse fim, afinal de contas, como professor defendo um princípio importante que é o reaproveitamento de materiais que, além de livrar o meio ambiente de dejetos desnecessários possibilita o acesso de mais pessoas às experiências expressivas. O conceito de reutilização me levou a buscar um material que preenchesse tais condições. O que melhor atendeu ao processo foi retirar o alumínio das latas empregadas em embalagens de bebidas gazeificadas por ser de fácil obtenção e adaptação atendendo aos propósitos do projeto.

Para usar este material é necessário manipulá-lo: cortar, abrir, estender e alinhá-lo em lâminas. Tudo isso deve ser feito com muito cuidado pois as lâminas são finas e cortantes. Uma tesoura comum pode ser usada para isso sem problema, mesmo tesouras escolares. Depois disso é necessário limpar suas faces pois a parte interna é revestida por uma camada de isolante e a parte externa é impressa. Pode-se fazer isso por meio de polimento usando palha de aço de uso doméstico. É importante que toda a camada de tinta externa ou proteção interna da superfície seja retirada. Para isso pode-se usar também solvente à base de tolueno, comercialmente chamado de thinner. Os cuidados são essenciais, o lixamento deve evitar lesões às mãos e quanto à inalação do vapor do solvente (usar luvas e respiradores). Feito isso, obtêm-se uma superfície brilhante que irá receber com facilidade a imagem.

Placa metálica e matriz para trnasposição.
Entretanto como a ideia era a de manter a aparência da imagem próxima a da primeira fotografia, a superfície brilhante não seria a melhor opção. Assim me propus a explorar outros recursos como texturas e oxidação. Lixar em diagonal a superfície atendeu em parte ao proposto, mas o melhor resultado foi obtido com a submissão das placas em banho com solução de hidróxido de sódio, conhecido como soda cáustica (cuidado com isso, não se pode inalar nem tocar). Uma solução básica é uma colher de café numa xícara de água. Isso faz com que a superfície da placa fique fosca e homogênea. Banhos mais longos nesse processo provocam variações e oxidações irregulares e interessantes nas superfícies que podem ser usadas como base para as imagens a serem transpostas. Estes procedimentos devem ser feitos com muito cuidado pois o produto é lesivo à pele e ao sistema respiratório. Crianças e pessoas não habilitadas a trabalhos manuais não devem tentar realizar esses processos, pois correm risco de acidentes.

Oxidação com soda caústica.
O passo seguinte é transpor a imagem impressa do papel para o metal. Considerando a proposta de não usar os sensibilizantes comuns da química fotográfica ou da serigrafia, tive que buscar soluções que recorressem a produtos e recursos do cotidiano. Por meio da Rede Mundial de Computadores foi possível encontrar alguns procedimentos de transposição deste tipo de imagem, no entanto, nenhum deles se referia à transposição para superfícies de metal. A maioria fala de “transfers”, ou seja, de transferências imagens obtidas por meio de impressoras a jato de tinta para superfícies mais porosas como tecido, madeira, papel ou papelão.

Fixando a imagem do papel para a placa de alumínio por meio de calor, com ferro elétrico.
Experimentei dois processos: um recorre ao calor e outro aos solventes.
A transferência térmica é adequada, considerando que o sistema de produção de cópias a laser se baseia nele, é termográfico, usa o calor para fundir o tonner no papel. Para transpor a face da imagem deve ser colocada em contato direto com a superfície metálica e sobre ela pode-se colocar um ferro elétrico em temperatura alta (de preferência sem vapor), assim o toner é “colado” do papel para a chapa metálica por meio do calor.

Fixando a imagem na placa metálica por meio de solvente usando um rodo plástico.
O segundo processo utiliza solventes. O mais acessível, menos nocivo e comum é a acetona, um produto encontrado no comércio de cosméticos, normalmente usado como solvente para esmaltes de unha. Basta colocar a face da imagem em contato direto com a superfície metálica  e  molhar as costas do papel com a acetona, pressionar com alguma lâmina suave e a imagems será colada na superfície. Esse mesmo processo pode ser feito com tolueno/thinner com o mesmo resultado, mas cuidado para evitar danos às mãos e à respiração, (lembrar de usar luvas e máscaras).

Molhando o papel para dissolver a celulose.
O passo seguinte é retirar o papel sem interferir na imagem. Para isso basta molhar o papel aspergindo água em sua superfície ou mergulhar a placa com o papel em água, com isso a celulose amolece e, aos poucos, se desintegra, assim o processo de descolamento é realizado. No entanto nem toda celulose sai, é necessário friccionar levemente a superfície com os dedos e, aos poucos, a imagem transferida surgirá.


Retirando o papel da superfície da placa.
Retirando o excesso de celulose da placa.
Como o processo é rudimentar nem sempre a transposição é nítida como uma fotografia, é justamente esta precariedade que interessa. Há imperfeições e interferências físicas como bolhas, rasuras, fragmentações, alterações tonais e manchas sobre as quais não se tem controle, logo, essas imagens são instáveis. No entanto, essa precariedade, ao contrário de ser um defeito é exatamente isso que se quer: obter imagens à semelhanca das primeiras fotografias, pois os defeitos, ao invés de prejudicá-lassão  elementos de distinção. Essas interveniências  inesperadas, inusitadas se tornam interessantes ao serem incorporadas às imagens e passam a intensificar suas características e ampliam seu sentido de individualidade e personalidade, assim, cada imagem se torna um original e não mais uma simples cópia.

Uma versão em alto-contraste, com suporte liso.
Depois do processo completo, deixo secar e protejo com verniz fosco que garante acabamento e permanência das imagens nas superfícies metálicas.

Uma versão texturizada, onde o suporte foi polido em sentidos diagonais.
Tenho editado algumas séries por meio desse processo. Embora possam ser numeradas e assinadas não são Gravuras, mas Múltiplos.

Sugiro que, se puderem, criem suas imagens, busquem novas soluções, experimentem o processo e se divirtam...

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