MEMÓRIA – Projeto Vênus de Milo.

Memória, enquanto tema para reflexão, recorre às obras ou séries que realizei em outros tempos...
Refere-se às poéticas em processo ou percurso. Momentos em que certas ideias, conceitos e proposições assumiram estágios ou manifestações passíveis de diálogos, independente de terem sido mostrados ou não, cujos processos resultaram em proposições às quais é possível recorrer para rever, retomar ou simplesmente, lembrar... memória é isto!

Quem é Vênus de Milo? 

Uma escultura de 2,02 cm de altura, supostamente realizada na Grécia antiga, em homenagem à deusa Afrodite, provavelmente no século III a.C., cuja autoria é atribuída ao escultor Praxíteles. Foi encontrada em 1820, próxima à cidade de Milo, daí seu nome. Faz parte do acervo do Louvre desde 1821, é uma das imagens mais conhecidas do mundo. Desde então tem sido reproduzida em vários materiais e tamanhos com fins ilustrativos, decorativos e comerciais.





Um dia, ao passar casualmente numa loja de objetos decorativos, vi pequenas reproduções em gesso da escultura da Vênus de Milo com aproximadamente uns 30cm. Me senti incomodado com aquela situação insólita: um deslocamento cultural gratuito, sem qualquer referência à origem ou características de sua origem. É um hábito comum da chamada Indústria Cultural não medir esforços para transformar manifestações humanas dignas da história, da cultura de vários lugares e tempos em objetos sem sentido, destinados apenas a encimar móveis sem qualquer referência, pertencimento ou identidade. 

Ao mesmo tempo me senti compelido a dialogar com esta situação e o caminho que adotei foi o de trabalhar com o conceito de deslocamento e ruptura cultural. Adquiri três daquelas reproduções com o propósito de submetê-las a uma recriação conceitual que Batizei de Projeto Vênus uma das proposições que realizei na década de 1980.




Minha abordagem partiu da proposição de uma “estética da mutilação”, o ponto de partida e conceito para desenvolver o processo fazendo referência direta às mutilações sofridas pela imagem original, reveladas pela falta dos braços e marcas de cortes e impactos presentes no corpo da escultura.



É comum que a estatuária antiga apresente mutilações decorrentes de depredações e descuidos que sofreram ao longo do tempo. O curioso é que tais mutilações a colocam à margem do conceito grego de beleza ideal. Explico: a Grécia clássica representava o corpo humano segundo forma e aparência idealizada, como um modelo, um cânone. Assim que a Arte grega clássica passou a ser lida pelo processo de de formação artística das Academias tradicionais, especialmente, as de Belas Artes. 

Boa parte do aprendizado nestas academias se baseava na cópia de modelos, em geral de obras de origem greco-romanas. A questão é que, muitas obras apresentavam mutilações e eram reproduzidas assim mesmo, logo, muitos artistas egressos dessas academias mantinham tais "defeitos" como "qualidades". Por um lado era, de fato um defeito, decorrente de acidentes que tais imagens sofreram, parte delas traziam mutilações e os estudantes, como bons copistas, as reproduziam na "íntegra", por outro lado, narrar tais defeitos demonstrava a habilidade do artista que as reproduzia. Acredito ter sido assim que o comportamento de criar figuras mutiladas de corpos humanos se tornou um "estilo" nas representações figurativas da Arte tradicional, um acidente de percurso... 


Percebe-se que tais mutilações não foram criadas com fins expressivos, mas simplesmente para imitar, torná-las mais semelhantes às obras clássicas com a pretensão de impor a elas um “valor estético” histórico, mesmo que artificial. Este mau hábito passa a caracterizar boa parte das esculturas produzidas com fins ornamentais e decorativos encontradas nas melhores "lojas do ramo"...

A partir destas reflexões defini que a Mutilação seria o tema e conceito da proposição, assim, estabeleci o seguinte procedimento: cada uma das três peças seria seccionada em partes desiguais a partir de cortes em ângulos variados na sua longitude criando pequenos blocos irregulares. Mantive as bases intactas e em cada uma delas instalei uma haste metálica para que funcionasse como eixo onde seriam remontadas as peças obtidas da mutilação, intercambiando-as.







Cada fração resultante dos cortes foi perfurada longitudinalmente. 
Esta perfuração teve como finalidade possibilitar a remontagem das figuras destituindo-as da aparência e formato originais. Para aumentar a diferença entre as peças, cada uma das esculturas recebeu uma cor primária: Azul, Amarelo e Vermelho. Assim, as pessoas poderiam manipular tais peças remontando-as do modo que lhes conviesse, criando assim, novas configurações a partir de módulos semelhantes.  




















Portanto, a mutilação, ao contrário de ser um mal se torna um processo, um jogo, estético-interativo no qual os diferentes resultados ampliavam seu sentido e significação gerando novos estágios de compreensão ao mesmo tempo em que suprimia, em parte, o caráter kitsch das reproduções originais, aproximando-as das obras contemporâneas conceitualistas.




Procurei documentar fotograficamente todo o processo em suas diferentes etapas, nem todas as imagens foram recuperadas, mas as que restaram dão uma ideia desta proposição.






Observem, reflitam e compartilhem, agradeço.

REFLEXÕES - Arte é mercadoria?


Talvez você já tenha se perguntado se Arte é mercadoria, se não, vamos pensar um pouco à respeito...

Desenho à carvão e tinta vinílica, Isaac
O que chamamos Arte descende de um percurso histórico que começou nos primeiros tempos da humanidade e dura até hoje. Embora seja uma das atividades humanas mais antigas não corresponde necessariamente à sua aceitação incondicional e integral. Suas funções e características mudaram em relação ao seu tempo e seu lugar. O que se entende por Arte numa época não é o que se entende por Arte em outra e mesmo, na mesma época, são vários os modos que as manifestações artísticas assumem. A Arte está presente na vida humana e em todas as civilizações e culturas desde sempre...

Estar presente e existir não significa ser essencial, logo, os modos e meios pelos quais a sociedade a instaura, cria, usa e abusa também mostram diferentes condutas e comportamentos que nos levam a refletir também sobre sua importância econômica e esta é a pretensão desse texto. O foco principal é a Arte Visual, já que minha formação e atividades profissionais se organizam neste campo e tem sido o principal tema deste espaço virtual. Reforço que meu entendimento compreende a Arte como um campo de conhecimento e, como tal, implica em abordá-lo por meio de análises que contemplem sua presença tanto como um fazer quanto um pensar, ou seja, por meio de comportamentos tanto pragmáticos quanto estéticos.

Nos primeiros tempos a Arte Visual parecia estar vinculada aos rituais, à magia e às pretensões simbólicas do ser humano. Na antiguidade vinculada às civilizações, ao poder, aos interesses e metas dos grandes impérios e nações. Na Idade Média e Idade Moderna, dependida ainda da religião, da nobreza e depois da burguesia, o que também continuou acontecendo até o século XIX. A autonomia da Arte só começa a ser conquistada a partir da Idade Contemporânea, no século XIX, com o advento da Modernidade ou Modernismo, quando os artistas passam a confrontar a tradição clássica acadêmica.

A meu ver, Economia diz respeito aos meios de apropriação, extração, transformação, produção e distribuição de bens e serviços destinados à vida, uso e ao consumo humano. Esta definição genérica é proposital e quer cobrir as diferentes atividades que contemplam as transformações que ocorreram e ainda ocorrem na sociedade humana desde seus primeiros tempos. Assim a Arte se enquadra nesse contexto e cobre a realização de bens materiais e imateriais. Tanto a partir das intervenções nas paredes das cavernas, a construção de monumentos, sua ornamentação e "ilustração" quanto a produção de Obras de caráter estético e/ou funcionais que fazem parte desse universo.

Neste sentido os primeiros "artistas" foram os seres humanos da pré-história que praticaram as primeiras imagens e que delas não tiraram nada além de esperança e, talvez, prazer. Na antiguidade eram os artesãos que narraram a saga de seus guerreiros e nações, ilustraram os templos, túmulos e palácios, homenagearam deuses e líderes e, na maioria das vezes, trabalhavam para obter apenas seu sustento, seu alimento. No medievo permaneceram fazendo o mesmo, enaltecendo ainda mais a religião, mas se mobilizaram em corporações para defender seu labor e buscar um pouco mais de respeito e organização.
Na Idade Moderna, a partir do Renascimento, passam a ser reconhecidos pelas suas competências intelectuais e estéticas diferenciando-se dos artesãos e se aproximando do status da nobreza. Têm o reconhecimento como um profissional diferenciado o que também lhes possibilita prestar serviços mais especializados e receber melhor por isso. Atende encomendas e se submete aos mecenas e poderosos.

Pode-se dizer que durante a maior parte do tempo em que a Arte Visual esteve presente na saga do desenvolvimento humano, a práxis artística se caracterizou como uma prestação de serviços especializados. Apenas a partir da Idade Contemporânea, iniciada historicamente pela Revolução Francesa em fins do século XVIII, é que começam a surgir as primeiras tentativas de fazer da Arte uma atividade autônoma e pessoal na qual o artista passasse a ser o idealizador e gestor de sua produção onde a pesquisa estética e material contribuiu para o surgimento do Modernismo em fins do século XIX e para o desenvolvimento da Arte Contemporânea a partir do século XX.

Até agora, as preleções realizadas não apontaram, de fato, para a questão motivadora deste texto: A relação da Arte Visual com o Mercado. Como manda o melhor procedimento professoral, adoto uma definição de Mercado: A troca, cessão ou aquisição de bens e serviços por valores, em geral, monetários.

Pode-se dizer que, desde a antiguidade, há um Mercado para a Arte. Objetos como esculturas ou reproduções de ídolos eram mercantilizadas com fins ornamentais ou votivos. Contudo, a prestação de serviços é mais perceptível do que a mercantilização nos primeiros tempos da Arte. Para a identificação completa de um Mercado de Arte é necessário, além da identificação dos agentes criadores, a identificação de agentes mercantis, de comerciantes, mercadores ou, na língua francesa: de Marchands.

Durante muito tempo na história, os próprios artistas eram os agentes negociadores e buscavam eles mesmos seus clientes para a formalização das encomendas quando definiam as obras, suas características temáticas, técnicas, valores, prazos e pagamentos. Isto caracterizava ainda a prestação de serviço e não necessariamente ações mercantis.

Em torno do século XVIII é que o Mercado de Arte passa a existir com mais especificidade. Comerciantes de materiais e produtos artísticos passam a expor em seus estabelecimentos as obras que obtinham de artistas por meio de trocas por material ou em consignação para venda. Ainda não eram galerias, mas já davam conta de um "negócio" especializado.
O advento dos grandes Salões franceses contribuiu para a publicidade dos artistas aumentando o acesso do público às Obras de Arte e possibilitando a ampliação do seu comércio junto à burguesia e a distinção de novas tendências.

Mas é a emancipação da Arte Moderna que possibilita aos artistas investirem em projetos pessoais, isto implica também em buscar novos públicos. É nesta busca que investem os primeiros grandes Marchands do século XX e, com isto, definem as diretrizes do Mercado de Arte.

É necessário entender então uma mudança do campo da prestação de serviços para o campo da realização de obras personalizadas que, ao invés de atender ao gosto do público, atendiam prioritariamente às proposições dos artistas, uma inversão do processo anterior. Com isto surge também a necessidade da especialização desse mercado, pois, não é o gosto do cliente que importa, mas a proposição do autor e, com isto, a necessidade do convencimento, das relações interpessoais, da negociação.

Ai se instaura o chamado Mercado Primário de Obras de Arte: os Marchands representam os artistas e comercializam seus trabalhos em suas Galerias, assim, passam a promover o comércio de Obras de Arte, fazendo com que, a despeito dos artistas e de suas proposições ou idiossincrasias, eles passem a dominar este contexto subordinando os artistas ao seu domínio resultando, hoje em dia, nas Art Fairs, eventos contemporâneos criados pelas galerias para mercantilizar obras de seus acervos ou de seus representados.

Deste mercado primário, surge o Mercado Secundário, campo dominado pelas grandes casas de Leilões que além de supervalorizarem as obras também especulam no mercado financeiro transformando tais obras em ativos financeiros de alta performance. Neste contexto os artistas e as galerias são deixadas de lado, não participam mais desse processo e as Obras de Arte são tratadas como ativos financeiros, commodities, Mercadorias, é o triunfo do Mercado sobre a criação.

O conceito Marxista de mercadoria define algo que pode ser consumido imediatamente para o atendimento de uma necessidade, portanto desaparece com o uso ou, e ai é o ponto que nos interessa, algo que pode se tornar um Capital, algo com valor em si mesmo e sujeito ao acúmulo e à especulação. É nesse sentido que o mundo capitalista entende a Arte Visual: como um bem mercantil, um investimento gerador de lucros.

Isto contradiz a criação artística como um ato estético volitivo pois, a partir do momento em que a obra existe, passa a ser objeto de mercantilização, fazendo do artista refém do sistema de arte instaurado na sociedade capitalista como um gerador de bens.

Contemporaneamente a dicotomia entre estas duas posições: proposição estética versus produto mercantil, deflagra algumas questões de sobrevivência dos próprios artistas que podem ser analisados sob, pelo menos, dois pontos de vista: o do Artista Propositivo e o do Artista Conformado.

Chamo de Artistas Propositivos, aqueles que têm como fim primeiro o desenvolvimento de processos de criação personalizados contidos no universo da Pesquisa em Arte, cujo desdobramento resulta em Obras de Arte, intervenções, instalações, instaurações, performances e ocorrências estéticas que não visam, a priori, fins mercantis, mas sim o Valor estético. Por isso dependem de investimentos, normalmente a fundo perdido, pois não contam com a certeza da mercantilização de suas realizações. Tais investimentos são feitos pelos próprios artistas por meio de recursos próprios, atividades paralelas, coworkings, coletivos artísticos, residências artísticas ou apoio de instituições públicas ou privadas, empresas ou investidores dispostos a subvencionar seus trabalhos incluindo-os no conceito de economia criativa, ideia que vem tomando conta do mundo atual. Neste caso, tendem a não se caracterizar necessariamente como geradores de Mercadorias, mas como criadores dependentes de subvenção que os apoie e abra caminhos e possibilidades para manter sua atividade criativa.

E chamo de Artistas Conformados aqueles que produzem suas obras a partir das tendências em vigor ou do gosto reinante sem muitas preocupações estéticas, mas objetivando as tendências definidas pelo mercado. Estes artistas se apropriam ou são apropriados pelos esquemas mercantis e se tornam celebridades, personalidades de prestígio no mundo Pop, onde valem mais das estratégias de marketing do que as qualidades estéticas. Normalmente são promovidos pelas grandes galerias, pelas grandes casas de leilões transformando seus trabalhos em ativos importantes no mercado financeiro onde o Preço se sobrepõe ao Valor estético. Neste caso, tais produtos podem ser caracterizados como mercadorias e, desse modo interferem no sistema de arte com ações predatórias concentrando muito investimento em poucos atores gerando o desequilíbrio do sistema.

Enfim, ser mercadoria ou não eis uma questão atual...

Agradeço a leitura e compartilhamento, obrigado.

REFLEXÕES - Aliens da “in-consciência”: Não ouço, não falo, não vejo...

Três Negativas! Desenho à carvão e pastel. Isaac.

Ao traçar formas nos desenhos que desenvolvo, nem sempre, tenho uma ideia pré-concebida do que surgirá no processo. Também não me preocupo em criar algo figurativo, em geral, me proponho a trabalhar com imagens abstratas. Nesse caso, quando desenhava, vi surgirem três figurinhas meio “aliens”, imediatamente me lembrei dos três macaquinhos japoneses: Mizaru, Kikazaru e Iwazaru que, nesta sequência, ilustram um provérbio da sabedoria nipônica: não vejo o mal, não ouço o mal e não falo mal. Saru/macaco e Zaru/negação criam o sentido simbólico e salutar desse provérbio assim, completei as imagens lhes acrescentei “Xs” nos supostos ouvidos, boca e olhos para reforçar este sentido.





Detalhe: Não ouço!


Detalhe: Não Falo!



Detalhe: Não vejo!

Para o pensamento ocidental, nem sempre, tais imagens são entendidas pelo seu sentido original, podem ser confundidas com a atitude displicente de ignorar o que não interessa. Pensando nisso peguei o gancho das negativas e tomei outro rumo: o do estado de alienação, assumida ou compulsória, que vem tomado forma ultimamente e desafiando nossa inteligência. Parece haver uma espécie de anestesia intelectual impedindo as pessoas de pensarem, refletirem ou, simplesmente, agirem com bom senso.




Detalhe: Não Ouço!


Uma das questões que me vêm à mente, de imediato, é a intensidade com que o “capitalismo predatório” tem se expandido nas últimas décadas. Tudo deve ser transformado em “commodities”: grãos, minérios, carnes e outros bens produzidos em escala massiva e descontrolada sob a égide da riqueza e do desenvolvimento. Não basta esgotar as jazidas ou a capacidade gerativa da natureza, parece ser preciso fazer dela “terra arrasada” para que ninguém, nunca mais possa usufruir dela. A poluição ambiental promovida pela produção industrial desenfreada já dá mostras de esgotamento e os grandes, ou melhor, pequenos líderes mundiais, continuam defendendo e protegendo este processo. Basta ver a quantidade e lixo depositado no ambiente refletindo exatamente a incapacidade de cuidar da própria casa... o que dirá da casa dos outros... para onde são enviados milhares de contêineres abarrotados de lixo tóxico, contaminado ou só lixo mesmo...




Detalhe: Não Falo!




O sistema político representativo, típico das sociedades livres, antes democráticos, se tornou um meio de manutenção do poder imiscuído das corporações, quadrilhas, milícias e até mesmo políticos que não medem esforços nem dinheiro para dele se apropriar e nele permanecer tornando-nos reféns e ao mesmo tempo vítimas deles.
As grandes empresas mundiais associadas às indústrias do petróleo, de mineração, da química farmacêutica ou de insumos agrícolas e o próprio agronegócio manipulam a produção, distribuição e consumo. Não se pode esquecer a mais rica e promissora delas: a indústria das armas que, quando não investem nos conflitos armados com vistas a derrubada, substituição ou tomada do poder armam seus exércitos para manterem a ordem... 






Detalhe: Não Vejo!

Tudo isso reflete as estratégias cada vez mais intensas e menos dissimuladas de dominação. Para isso devem anestesiar sistematicamente as consciências, seja por meio da neutralização da Educação e do controle das mídias de informação ou da comunicação e da propaganda implícita ou explícita promovendo o poder em benefício dele próprio. Para isto criam falsos problemas ou falácias que justifiquem ações de dominação sobre a população de seu próprio país ou de sua nação sobre outras nações por meio da violência clara e explícita. Assim dominam territórios, meios de produção e desenvolvimento se tornando os senhores da guerra e da paz...
Para tanto são fomentados conflitos em várias partes do globo cujo resultado vemos ao olhar para nações, estados e regiões completamente arrasadas. Sua população expulsa de seus lares, lugares e regiões,  migrantes e refugiados se deslocando em massa e sem rumo impulsionados pelo medo, pelo terror ou simplesmente porque lhes falta ou inexistem condições de amparo social para manterem suas famílias com o mínimo necessário apenas para viver.








As humilhações às quais as pessoas estão submetidas não têm limites: seja pela falta de condições adequadas de sobrevivência e dignidade como trabalho, moradia e saúde, para falar só de questões prioritárias, sobram ainda muitas outras vinculadas à educação, ao respeito à dignidade, à diversidade seja ela de gênero, orientação sexual, etnia, nacionalidade ou qualquer outra diferença que requeira respeito, simplesmente não o recebem. A falta de respeito só aumenta a violência contra a pessoa, contra grupos minoritários, contra tudo que pareça diferente e isso tem alcançado níveis alarmantes dia a dia, basta ver os atentados promovidos contra as minorias mesmo em países em melhores condições econômicas e sociais.


Este é um retrato nu e cru do mundo atual, não é uma denúncia, tampouco alarmismo, basta acompanhar as notícias de instituições de pesquisas ambientais publicadas ao longo dos anos para perceber o tamanho do desastre ambiental e social que vem se desenhando ao longo do tempo. O que aflige é que, em contrapartida, aqueles que tem responsabilidade de representar, cuidar do ambiente e das pessoas por meio de políticas públicas protetivas, agem com escárnio, como Sanzarus reversos: não ouvem bem, não vêem bem e não falam nada que aponte para um tempo ou mundo melhor, mais equânime e respeitoso.


E eu aqui tentando falar de Arte... Que ironia...

Peço que desculpem o desabafo. Em tempos nublados e duvidosos como vivemos até na Arte nos ressentimos dessas mazelas...

Agradeço a leitura e compartilhamento.

REFLEXÕES- Figurativo, Abstrato, Conceitual: o que é isso?

Desenho a carvão e tinta vinílica, Isaac


As Obras de Arte podem ser abordadas por meio de suas formas, pelas suas qualidades plásticas, pelos elementos que determinam sua aparência e suas características estruturais pode-se identificar estilos, escolas e mesmo seus autores. Esta é uma das vantagens que encontramos em algumas manifestações artísticas, ou seja, além de poderem ser lidas pela sua forma, podem também ser lidas pelos seus conteúdos ou pelo que as motivam no contexto sócio/cultural do qual resultam, participam e significam.
Seguindo este raciocínio é possível reconhecer, pelo menos, duas categorias da Arte Visual amplamente aceitas: a Figurativa e a Abstrata. Identificar essas categorias parece fácil, é só pensarmos que tudo aquilo que se parece com o que conhecemos no mundo natural faz parte da categoria figurativa e, ao contrário, tudo o que não se parece com o que podemos reconhecer no mundo natural, faz parte da categoria abstrata. Simples e direto. Para começar, está ótimo, mas será que isso dá conta de tudo aquilo que conhecemos em Arte Visual? Vamos exemplificar vendo as duas imagens, a seguir.

 
Parece mais fácil ainda reconhecer essa diferença, vendo-as já nos sentimos especialistas. Mas será que isso basta? Acima temos uma obra de Perugino, artista do Renascimento italiano, que mostra bem as características figurativas: As pessoas, ambientes e coisas se parecem com o que conhecemos no mundo natural. Em baixo temos uma pintura de Peter Lanyon, esta nos revela as características do abstrato, ou seja, as formas e as cores não correspondem ao que conhecemos no mundo natural. Estas duas categorias podem ser suficientes para identificar, numa primeira aproximação, a aparência sob as quais algumas obras de arte se manifestam, no entanto, não são suficientes para esgotar todas as possibilidades das manifestações artísticas, daí temos que evocar outras categorias. Vamos ver mais uma obra e pensar se o que dissemos até agora é suficiente.

  Pelo que podemos ver temos alguns problemas, agora as imagens não se parecem muito com aquilo que conhecemos. Embora possamos ver que tratam de pessoas, ambientes e coisas, não se parecem necessariamente com as pessoas, com as paisagens ou as com as coisas que conhecemos e que fazem parte de nosso convívio, mas ainda assim parecem se referir a coisas reconhecíveis, mesmo que nem sempre sejam encontradas no mundo natural do mesmo modo que as vemos nas representações visuais das imagens. Acima temos uma paisagem de Eric Heckel, é estranha, parece que não faz parte desse mundo, ao invés de nos acalmar, como querem as paisagens bucólicas, nos deixa tensos. Ao centro, uma obra de Karel Appel, vemos três seres que mais se parece com “aliens” fugido de um filme de ficção científica e não com pessoas. E a Natureza Morta de Morandi, embaixo, também parece não se referir a nada, a não ser que sejam gabaritos e sólidos geométricos, provavelmente sem função pragmática. Então, qual é o problema?

Bem, primeiramente é necessário lembrar que estas Obras de Arte foram produzidas a partir do final do século XIX e do início do século XX e, portanto, fazem parte de um momento em que os artistas optaram por não recorrer à obviedade da reprodução ou representação do mundo natural como um dos meios de aditar valor às suas obras ou às suas performances. Logo, reproduzir imagens que mostravam as pessoas como pareciam no mundo, as paisagens ou as coisas como elas são conhecidas e reconhecidas por meio de nossas experiências visuais, não era mais uma preocupação que os motivava, mas sim a busca, a procura pela invenção, experimentação e por novas soluções estéticas.

Optaram, então, por estabelecer diferenças marcantes entre as coisas do mundo e as coisas da Arte: Mundo é Mundo e Arte é Arte, assim tem sido até hoje. Não custa nem cansa afirmar e reafirmar que as coisas do mundo pertencem a ele e as coisas da arte pertencem ela. Os fenômenos naturais são ocorrências passíveis de serem interpretadas, decodificadas, conhecidas e estudadas pela ciência, especialmente as ciências naturais, que buscam as explicações sobre as ocorrências na natureza por meio da física, da química ou da biologia. Ao contrário, no campo da Arte, as preocupações não se referem às explicações sobre tais fenômenos, mas sim como é possível abordá-los, ressignificá-los por meio de manifestações estéticas, plásticas e conceituais.

Uma pergunta que não quer calar é a seguinte: porque a Arte Visual deixou de se referir às imagens do mundo natural, imitando-as ou representando-as e passou a subvertê-las, recriá-las ou simplesmente, inventá-las?
Não seria mais fácil e mais "bonito" continuar a fazer algo agradável que poderia nos tornar mais felizes, equilibrados ou complacentes? As imagens não eram “belas”, agradáveis, sossegadas e, exatamente por isso, eram chamadas de Arte?

Para a Grécia Clássica, para os Renascentistas ou para os Neo-Clássicos, o Belo, tomado como um conceito de excelência de caráter moral permeava as concepções estéticas. Havia um certo recato, uma busca pela "perfeição" aceita, programada ou premeditada pelo gosto daquelas civilizações que dominavam e determinavam o padrão visual esperado da Arte como o meio de realização de imagens.
Grande parte das Obras de Arte destes períodos se dedicavam à narrativas, interpretações de ocorrências, fatos ou eventos históricos, religiosos ou mitológicos. Afirmavam a capacidade do artista em "representar" tais ocorrências com a eficiência de suas habilidades e virtuosismo. Logo, "fazer bem", "imitar direito" era uma das métricas mais importantes para a avaliação daquelas obras.

A partir do século XIX, na medida em que as transformações sociais e econômicas ocorrem, ocorre também a transformação do gosto, dos padrões estéticos da sociedade possibilitando aos artistas investir nas inovações, nas experimentações e na busca de novas soluções artísticas que dialoguem com mais autonomia e eficiência com os novos valores nascentes e em desenvolvimento.

Portanto desmimetizar, desmistificar, desconstruir, ressignificar passam a ser também valores estéticos assim como os valores já consagrados e concebidos no contexto da expressão artística. Por isso a Figuração se torna DE-figuração ou, se quiserem, desfiguração dando margem ao surgimento de tendências como as do Expressionismo e, mais tarde da Abstração, por exemplo.

Pode-se dizer que as Obras de Arte contemporâneas falam "outra língua" e descobrir ou entender esta outra língua tem sido a tarefa dos estetas e teóricos da Arte Visual dos últimos anos, desde o Modernismo.

Acredito que grande parte das manifestações contemporâneas estão focadas em Proposições, ou seja, os criadores atuais não se conformam aos procedimentos representativos ou reprodutivos que orientaram o conhecimento tradicional, mas sim em descobrir, experimentar novas possibilidades e soluções que dialoguem como o tempo atual.
A partir do momento em que as manifestações artísticas valorizaram as qualidades sensórias, plásticas e visuais dos elementos constitutivos ou das substâncias de expressão que manuseavam ou manipulavam para produzir suas Obras, incorporaram novos valores, novas tendências estéticas e conceituais aos valores artísticos.Trouxeram novas cargas emocionais que não se referiam apenas às "representações teatralizadas" dos mitos, da história ou religiosas das alegorias preferenciais da tradição acadêmica, mas passaram a acreditar na experimentação visual, plástica, matérica e conceitual, como meio de expressão.

A gestualidade, o cromatismo, o grafismo, as relações formais, estruturais e significativas passaram a ser os principais temas e assuntos, ou motivações, que vêm orientando boa parte das manifestações artísticas da contemporaneidade variando tais "cargas emocionais" com as quais deparamos na Arte atual.

Assim, podemos dizer que há momentos em que essas cargas emocionais são mais densas e tendem a mostrar rupturas, inconformismo, insatisfação e serem até mesmo agressivas. Um exemplo disso é a Guernica de Picasso que demonstra o inconformismo com o bombardeio, realizado pelo general Franco, da cidade de Guernica na Guerra Civil espanhola.

 
Este é o modo de dizer que elas adotam e, muitas vezes, chocam. Carregar as imagens nas cores, nos traços, nos temas e em outros detalhes que mobilizam nossa atenção é que provoca a interação e, quem sabe, seu compartilhamento. Estes são modos próprios de dizer que a Arte Visual tem adotado nas últimas décadas, há praticamente um século. Eles não precisam coincidir com o que vemos à nossa volta, não há mal nenhum em trabalharmos com imagens que não se parecem nada com a natureza, isso é até mais interessante do que simplesmente imitá-la.



E agora, parece mais confuso ainda? Essas obras são formadas por várias figuras: quadrados, triângulos, retângulos, círculos e linhas. As imagens acima: a primeira é de Wassily Kandinsky, a segunda é de Piet Mondrian, a terceira é de Max Bill.
Pode-se argumentar que tais figuras são facilmente identificáveis. Nós as conhecemos como figuras geométricas planas, típicas do desenho geométrico e são "Figuras" reconhecidas, portanto não seriam também Imagens Figurativas?
As figuras geométricas são nossas velhas conhecidas, mas vale lembrar que elas não fazem parte do mundo natural, portanto não foram tomadas dele por imitação, mas sim criadas para representar conceitos de medidas, áreas, que possibilitaram o surgimento da Geometria, são frutos do conhecimento, portanto, da Cultura e não da Natureza.
Por serem figuras que fazem parte de uma construção intelectual humana, são produtos culturais e não produtos naturais, portanto realizações humanas. Nesse caso, ainda podemos insistir em chama-las de abstratas, mas um tipo de Abstração especial, o Geométrico.
Assim demos nomes artísticos para elas: Abstracionismo Geométrico, Construtivismo, Neoplasticismo, Concretismo. Cada um desses nomes nos remete a um movimento artístico do século passado com referencias específicas aos modos de pensar e fazer Arte.
Mas porque essas obras têm essa aparência? Porque são tão organizadas, bem comportadas e delimitadas? Em geral, quando as obras mostram essa organização, revelam ocupação sistemática do espaço, podemos dizer que elas estão em busca de um mundo mais organizado, de um modo mais racional de manifestar o pensamento, de um modo mais elaborado.
Por isso elas se parecem mais austeras, mais equilibradas e nada passionais, tampouco agressivas como aquelas que vimos anteriormente. Podemos concluir que esse é um outro modo de dizer da Arte, um modo racional que se contrapõe ao modo irracional ou passional. É só lembrarmos que as Obras de Arte Visual não contam com as palavras para dizerem o que pensam, então usam a sua forma para produzirem sentido.

Agora veja a imagem abaixo:


 
Agora parece que tudo complicou, ficou mais confuso ainda. Ao invés de termos imagens sem coisas ou imagens das coisas, temos a própria coisa?
É praticamente isso. A obra de arte que vemos acima é de Marcel Duchamp, intitulada de “Fonte” e apresentada numa exposição de arte em 1917, em New York, nos Estados Unidos. Ao se apropriar de uma peça produzida em escala industrial, cria uma nova tendência artística, um novo comportamento expressivo ao qual chamou de Ready Made. Com isto impôs uma crítica direta à arte tradicional, propondo uma reflexão sobre os processos de criação e de convalidação praticados pelo Sistema de Arte. Uma das questões fundamentai desse processo é dado pelo crítico de Arte Nelson Goodman que nos alerta e diz que não devemos perguntar o que é Arte, mas sim quando é Arte.

Embora isso nos pareça um tanto confuso, vamos localizar as raízes desse modo tão complicado de ser nas atitudes do Dadaísmo, movimento artístico do início do século passado. O Dadaísmo foi movimento que mais contribuiu para estas condutas por suas atitudes niilistas, anti-artísticas e nada convencionais. Isso proporcionou uma reflexão sobre os modos de realizar arte e gerou uma nova tendência na arte visual, a Arte Conceitual. Mas o que vem a ser isso? A ideia de Arte Conceitual vem da década de sessenta do século passado e tem por objetivo discutir questões da Arte, na própria Obra de Arte.
Essas obras não precisam de explicação, procuram explicarem-se por si mesmas. Embora esta seja a meta de toda obra, para aqueles que estão habituados a ver a Arte do modo convencional, em quadros, paredes, esculturas e objetos em geral, estranham quando um objeto do nosso dia a dia passa a ser considerado como Arte apenas por ser organizado de um outro modo. Vamos ver outras imagens:

 
A imagem superior é uma das que instituiu o Conceitual na Arte, é a obra Uma e três cadeiras de Joseph Kossuth, de 1965 e a de baixo é de Waltércio Caldas, artista brasileiro, digno representante do Conceitual, intitulada duas garrafas, de 1982. Levando ao pé da letra a ideia de que são as obras que falam pela Arte, só podemos concluir que é justamente isso o que acontece. Logo, um objeto retirado de sua função cotidiana ou usual; um ambiente modificado e transformado por intervenções humanas; um lugar preparado para designar um novo percurso ou um novo modo de ver as coisas; é fruto da ação humana, da ação cultural, da ação e da intervenção estética é, em última instância, artística. Sob esse prisma devemos compreender que estas obras são tão Obras de Arte quanto as outras que vimos desde os primeiros momentos da humanidade, embora tenham aparências, funções e concepções completamente diferentes daquelas.

 
Nas obras que vemos aqui acima, a primeira, é uma instalação de Jannis Kounellis. A que está embaixo desta, é uma intervenção ambiental de Christo, que envolve, em plástico, a ponte Neuve de Paris. E a terceira é uma outra intervenção ambiental, em seguida outra "land Art" de Robert Smithson. Construir imagens, figurativas ou não, interferir, instaurar, apropriar, recriar, inventar, todos estes são modos de expressar incorporados nas e pelas manifestações artísticas. Com o que vimos até agora é possível admitir que existem várias maneiras da Arte se manifestar e, conseqüentemente, várias maneiras de lê-la ou de se referir a ela.

Muitas obras contemporâneas não podem ser enquadradas na categoria de figurativa, abstrata ou conceitual, mesmo que possuam qualidades plásticas tanto de umas quanto de outras. É bom saber que, independente das obras dependerem de suportes materiais, objetos ou superfícies, limitados pela materialidade ou não, é sua constituição formal, física ou virtual, que determina sua existência estética como uma ocorrência no mundo: uma Obra de Arte.

Estar pela Arte já é ser Arte. Nesse tipo de expressão as manifestações dela resultantes se confundem, pois os produtos que dela resultam não são, necessariamente, objetos artísticos autônomos, mas sim veículos das idéias e conceitos que discutem a própria Arte. A criação é, simultaneamente, processo e produto. Esse produto, na maioria das vezes, é uma reflexão de caráter teórico/conceitual.

Bem, é isso, conhecimento é pra compartilhar, degustem e compartilhem, obrigado.


REFLEXÕES - Você acha que macaco faz Arte?

Gesto Gráfico: Desenho a carvão e tinta vinílica sobre papel, Isaac 

Nós, que trabalhamos com Arte, somos sempre desafiados pelo conservadorismo que não perde oportunidade de confrontar a Arte Contemporânea.

A pergunta que abre este texto decorre de um  artigo de dez anos atrás, de 2009, no entanto, a motivação para realizá-lo naquela ocasião, ainda é atual. Na época o estímulo foi uma novela televisiva assinada por Walcyr Carrasco em que o principal tema era a Arte Visual.

O argumento focava a vida de um pintor habituado a expor em feiras de arte em praças públicas. Seu filho, acreditando na competência do pai, toma a iniciativa de convidar a gerente de uma galeria para visitar o atelier dele. Por obra do acaso ou do “destino”, no dia da visita, o atelier é invadido por um macaco que transforma suas pinturas figurativas, de caráter acadêmico, em abstratas. Por maior que fosse o desespero e espanto do pintor, a visitante adora as telas e se empolga a ponto de agendar uma exposição individual em sua galeria e ele acaba por aceitar a oferta. Isso implica em aceitar também a “ajuda” do símio invasor que passa a ser, de fato, o autor das obras e nesse momento se instaura a relação macaco/arte, o que não é incomum por se tratar de ficção. Na época o autor justificou o tema dizendo que queria “desmistificar" o universo das artes. A mim pareceu mais uma tentativa gratuita de desqualificação e desinformação.

Na mesma época, meses antes, este mesmo assunto havia sido tratado pelo saudoso Millor Fernandes que, em um texto, num conhecido periódico nacional, retomara a questão do "macaco artista" rememorando o percurso deste tema no contexto da arte desde a década de cinqüenta do século passado. Juntando todos estes ingredientes: televisão, imprensa e Arte sob a ótica das relações entre imagem, arte e mídia, considerei interessante tratar deste assunto. Na ocasião, era docente na Universidade Federal de Uberlândia, e publiquei uma síntese deste artigo no Correio de Uberlândia em 01/09/2009, na sessão "Opinião", em "ponto de Vista",pag. A2.

Tomando a ideia do Macaco Pintor, voltei mais atrás ainda, ao século XVIII e a partir dali observei a recorrência deste tema na pintura do século XVIII e XIX.
A figura simiesca frequentou obras memoráveis de Chardin (XVIII), Colleville (XIX), Deschamps (XIX), Vollon (XIX) e Von Max (XIX). Motivados pelo aspecto satírico ou, talvez, pela atração que os símios exercem sobre nós em função de sua capacidade de imitar as características humanas: serem "quase gente". Estes artistas realizaram pinturas em que macacos eram retratados como pintores ou apreciadores de arte.


A ficção, por sua vez, explorou inúmeras vezes esta possibilidade simiesca como no conto “Um relatório para a academia”, de Franz Kafka, onde um ex-macaco de circo narra sua transformação em gente, por ânimo e glória de seu amestrador que o mobiliza em torno de um aprendizado para ser humano, à despeito da agressividade e barbárie imposta pelo adestrador ao animal no intuito de "humanizá-lo".

Ao fim e ao cabo, esta parece ser a missão dos amestradores: humanizar a animalidade, já que o que se espera do animal adestrado é um comportamento que o torne parecido conosco. O que pode ser comprovado quando olhamos espetáculos em que os animais são vestidos como se fossem gente e levados a realizar tarefas como se pessoas fossem. Ou mesmo quando atribuímos a eles a responsabilidade de corresponder aos nossos anseios e carências sem respeitar sua "animalidade", ou seja, sua identidade e condição tornando-os reféns de nossos prazeres... escravos de nossas vontades... Existe mais "desumanidade" que isto?

Voltando ao ponto: Era comum vermos animais usados como atração em espetáculos circences, ainda bem que, hoje em dia, isto já está fora de moda, mesmo porque a conscientização e o respeito aos animais vem crescendo nos últimos anos entendendo-os como seres vivos dignos de respeito tanto quanto devemos a nós mesmos. Argumento semelhante a este obteve sucesso também no cinema, com o “Planeta dos Macacos”, sob a direção de Franklin J. Schaffner, realizado em 1968, em que um astronauta, interpretado por Charlton Heston, aporta num planeta governado por macacos evoluídos, onde a espécie humana é primitiva. Ao longo da trama se descobre que o planeta é justamente a terra, no futuro, destruída por um conflito nuclear, fato que possibilitou a evolução dos símios e a “in-volução” humana. Este filme instaura uma saga que dura até 1973. O tema se torna série televisiva que inicia e termina em 1974. É novamente revisitado pelo cinema em 2011 pelo diretor Rupert Wyatt e depois por Matt Reeves em 2014 e 2017 fechando uma trilogia.

Outro exemplo da humanização do animal pode ser lembrada na fábula de 1945, “A revolução dos Bichos” de George Orwel. Em que os animais de uma fazenda se rebelam contra os maus tratos e tomam o poder em busca de sua liberdade e autonomia. Mas, ao delegar entre eles as tarefas do poder, são contaminados por este mesmo poder e se tornam cada vez mais humanos, no pior sentido de humanidade: ditatoriais, autoritários e repressivos. Uma metáfora de nossas idiossincrasias totalitárias e xenofóbicas.

No entanto a possibilidade de evolução dos símios nos parece remota, na medida em que é pouco provável que o seu percurso evolutivo possa ser cumprido em tempo recorde, especialmente pela lentidão que este processo exige. Portanto, só resta a eles a possibilidade da imitação e, com isto, se parecerem ironicamente menos animais e um pouco mais humanos.

Voltando ao ponto inicial, a polêmica do "macaco artista" parece ter sido instaurada por Desmond Morris, pintor e zoólogo americano que, na década de 50 do século passado, estimulou um chimpanzé a desenhar e a pintar, levando Tyler Harris a escrever um livro valorizando o processo “criativo” de Congo, o macaco pintor “descoberto” ou “amestrado” por Morris. A polêmica instaurada por Morris/Tyler, veiculada na década de 60 num programa de televisão sobre animais que Morris manteve nos EEUU, mobilizou a crítica em torno da possibilidade de um macaco ser capaz de produzir arte. Instaurada a polêmica, Picasso, ao ser presenteado com uma obra de Congo, bota lenha na fogueira imitando o andar do macaco e dizendo serem “irmãos de armas”, ou ainda, Salvador Dali, colocando ainda mais lenha na fogueira ao dizer que: “A mão do chimpanzé é quase humana; a mão de Pollock é totalmente animal”. Inadvertidamente, tanto Picasso quanto Dali acabaram por dar corda ao debate em curso na época.

 
Mais tarde, surgem outras estrelas da arte simiesca, agora gorilas, é o caso de Michael e Koko, dois exemplares de pesquisa sobre inteligência animal, da Universidade de Stanford, coordenadas pelo Dr. Penny Patterson. Independente dos objetivos da pesquisa, que seriam os de descobrir seu nível de inteligência, mediante a capacidade de compreensão da linguagem humana e de símbolos como os da geometria e da matemática. O que é possível de obter com certa freqüência, admitindo que os experimentos também promovem o treinamento intensivo destes animais, tornando-os aptos a reagir aos estímulos construídos pelo ambiente da pesquisa, o que nada mais é do que condicionamento operante. Tal procedimento também pode levar a obtenção de sucesso no contexto dos fazeres da arte, como no caso de ocorrências gráficas ou pictóricas. Mesmo considerando que estes gorilas são os protagonistas de um programa de apoio a um projeto institucional de ajuda para a preservação da espécie, não se justifica a manipulação da opinião pública em torno da ideia de existência de uma "arte simiesca". Nestes ambientes, são estimulados também a exercerem seus “dotes” artísticos mediante diferentes estímulos externos.

  O caso destes e dos outros macacos, sempre esteve envolto numa aura de desconfiança e de incredulidade, o que coloca em dúvida sua capacidade de pensar/imaginar por conta própria, já que, a performance dos bichos era sempre presenciada pelos pesquisadores/amestradores. Outro aspecto interessante no limitado universo destes animais artistas é que sempre se expressam segundo uma poética não figurativa, não naturalista, impossibilitando aos avaliadores o confronto com outras manifestações artísticas reconhecidas, ou seja, a opção dos símios sempre foi pela arte “Abstrata”. Como dizia Morris “Expressionismo abstrato lírico”, mais próxima das garatujas infantis do que da Arte propriamente dita. Além disso, a opção pela expressão em superfícies bidimensionais é providencial, já que é mais fácil controlar o espaço onde estas “criações” são realizadas.
No caso de Congo, numa cadeira de criança adaptada para a colocação dos papéis e das tintas, cujo “estilo” preferido por ele era o “Fan”, ou seja “Ventilador”, em que a ação era realizada em linhas verticais, radiais tendo como eixo a proximidade com o seu corpo, mantendo como limite máximo o prolongamento de seu braço. No caso dos gorilas a delimitação também ocorre pelo alcance de seu corpo e o campo de ação e deslocamento em que se encontram.

Tanto uns quanto outros são essencialmente “gestuais”, daí a comparação com Pollock feita por Dali. É também interessante notar que nenhum deles “opta” pela expressão tridimensional como a modelagem, a escultura ou qualquer modalidade expressiva que se afaste de lápis, pincéis, tintas e papéis. Outrossim, não demonstram nenhuma ação programática, intencional ou propositiva. Assim acabamos nos afastando mais e mais da possibilidade de termos um macaco pintor, do mesmo modo que nos afastamos igualmente da possibilidade de termos um papagaio cantor...

 
Por outro lado a polêmica não se encerra por aqui sem mais nem menos, mas indica um outro rumo, rumo este pouco explícito que é o da crítica velada à condição da Arte Moderna e Pós-Moderna. Como se sabe, o Modernismo foi instaurado sob protestos e as críticas ácidas do conservadorismo vigente no fim do século XIX e início do século XX. Romper com um modelo conservador como era o da arte Clássica tradicional e mesmo com o Academismo que vigorava em alguns casos, foi imperdoável. A reação foi intensa e contínua excluindo do meio artístico aqueles que não se submetiam ao modelo vigente. Um pequeno exemplo disso ocorre com os artistas na França com a instauração do “Salão dos Recusados”, aberto em oposição e protesto à recusa de participação de vários artistas inovadores no tradicional Salão de Paris, em 1863, destinado exclusivamente aos artistas da Real Academia Francesa de Pintura e Escultura. Mais tarde, um bom número dos artistas recusados pelo salão oficial, foram mentores e difusores do Impressionismo e de outras tendências poéticas.
Entretanto, os defensores da arte conservadora e tradicional não se conformaram e continuaram detratando os artistas que, segundo eles, só eram capazes de obter uma mera “Impressão” do sol nascente, agiam como “Feras”, nomeando o que seria depois o Fauvismo ou só eram capazes de praticar algumas “Bizarrias Cúbicas”, nomeando também o que veio a ser o Cubismo. Tais ditos, do crítico francês Louis Vauxcelles, reforçavam a visão conservadora, ao mesmo tempo em que estimulavam os vanguardistas a continuar sua sina de provocações e inovações que só surtiriam efeito mais tarde, com o reconhecimento de suas obras e da capacidade criativa destas novas poéticas.
Até hoje, aquela maneira de fazer arte, cuja maior agressão foi receber a alcunha de “degenerada”, justificando sua expulsão das galerias e instituições oficiais, da Rússia pelos Socialistas e da Alemanha pelos Nazistas, ainda sofre as mesmas críticas negativas.

No Brasil, Monteiro Lobato, publica em dezembro de 1917, no Jornal da Noite, do O Estado de S. Paulo, uma crítica intitulada: Paranoia ou Mistificação” na qual tece comentários desairosos e pesados sobre uma exposição dos trabalhos da artista Anita Malfatti, em que diz: “Seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura". Ainda aqui, em 1968, um obscuro escritor, C.D´Agostino, publica um livro intitulado: "Arte Moderna" uma Monstruosidade"... onde dedica 232 páginas para denegrir e tentar defenestrar a Arte Moderna de seu lugar na cultura segundo um olhar enviesado e calcado nas suposições de uma estética maior, verdadeira, obtida da tradição acadêmica, contra o que acredita ser um ataque à tradição. Mais recentemente, o jornalista Luciano Trigo publicou, em 2009,  "A Grande Feira: uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea", onde critica a Arte Pós-Moderna, ou contemporânea, sob os mesmos critérios de seus pares anteriores.


Recentemente, em 2017, 100 anos depois das críticas ferrenhas de Lobato à exposição de Anita Malfatti, acontece o cancelamento da exposição "Queermuseu" em Porto Alegre, revelando também a face dessa incompreensão, intransigência e tentativas de apagamento da presença de manifestações artísticas que desafiam o senso comum e o conservadorismo desde o século XIX.

Contudo, mesmo veladas ou travestidas de humor e de graça, volta e meia esta mesma crítica ácida e repressora retorna, feita e difundida subliminar ou explicitamente pela mídia, colocando novamente uma pitada de desconfiança sobre a Arte Moderna, sugerindo que é possível vê-la realizada por qualquer um, inclusive, por um macaco.
No fundo, ainda sofremos as investidas daqueles que não se conformaram com as transformações da Arte na contemporaneidade que, fugindo ao seu domínio, desafiam o conservadorismo.

Agradeço a leitura e seu compartilhamento.