MEMÓRIA – Projeto Vênus de Milo.

Memória, enquanto tema para reflexão, recorre às obras ou séries que realizei em outros tempos...
Refere-se às poéticas em processo ou percurso. Momentos em que certas ideias, conceitos e proposições assumiram estágios ou manifestações passíveis de diálogos, independente de terem sido mostrados ou não, cujos processos resultaram em proposições às quais é possível recorrer para rever, retomar ou simplesmente, lembrar... memória é isto!

Quem é Vênus de Milo? 

Uma escultura de 2,02 cm de altura, supostamente realizada na Grécia antiga, em homenagem à deusa Afrodite, provavelmente no século III a.C., cuja autoria é atribuída ao escultor Praxíteles. Foi encontrada em 1820, próxima à cidade de Milo, daí seu nome. Faz parte do acervo do Louvre desde 1821, é uma das imagens mais conhecidas do mundo. Desde então tem sido reproduzida em vários materiais e tamanhos com fins ilustrativos, decorativos e comerciais.





Um dia, ao passar casualmente numa loja de objetos decorativos, vi pequenas reproduções em gesso da escultura da Vênus de Milo com aproximadamente uns 30cm. Me senti incomodado com aquela situação insólita: um deslocamento cultural gratuito, sem qualquer referência à origem ou características de sua origem. É um hábito comum da chamada Indústria Cultural não medir esforços para transformar manifestações humanas dignas da história, da cultura de vários lugares e tempos em objetos sem sentido, destinados apenas a encimar móveis sem qualquer referência, pertencimento ou identidade. 

Ao mesmo tempo me senti compelido a dialogar com esta situação e o caminho que adotei foi o de trabalhar com o conceito de deslocamento e ruptura cultural. Adquiri três daquelas reproduções com o propósito de submetê-las a uma recriação conceitual que Batizei de Projeto Vênus uma das proposições que realizei na década de 1980.




Minha abordagem partiu da proposição de uma “estética da mutilação”, o ponto de partida e conceito para desenvolver o processo fazendo referência direta às mutilações sofridas pela imagem original, reveladas pela falta dos braços e marcas de cortes e impactos presentes no corpo da escultura.



É comum que a estatuária antiga apresente mutilações decorrentes de depredações e descuidos que sofreram ao longo do tempo. O curioso é que tais mutilações a colocam à margem do conceito grego de beleza ideal. Explico: a Grécia clássica representava o corpo humano segundo forma e aparência idealizada, como um modelo, um cânone. Assim que a Arte grega clássica passou a ser lida pelo processo de de formação artística das Academias tradicionais, especialmente, as de Belas Artes. 

Boa parte do aprendizado nestas academias se baseava na cópia de modelos, em geral de obras de origem greco-romanas. A questão é que, muitas obras apresentavam mutilações e eram reproduzidas assim mesmo, logo, muitos artistas egressos dessas academias mantinham tais "defeitos" como "qualidades". Por um lado era, de fato um defeito, decorrente de acidentes que tais imagens sofreram, parte delas traziam mutilações e os estudantes, como bons copistas, as reproduziam na "íntegra", por outro lado, narrar tais defeitos demonstrava a habilidade do artista que as reproduzia. Acredito ter sido assim que o comportamento de criar figuras mutiladas de corpos humanos se tornou um "estilo" nas representações figurativas da Arte tradicional, um acidente de percurso... 


Percebe-se que tais mutilações não foram criadas com fins expressivos, mas simplesmente para imitar, torná-las mais semelhantes às obras clássicas com a pretensão de impor a elas um “valor estético” histórico, mesmo que artificial. Este mau hábito passa a caracterizar boa parte das esculturas produzidas com fins ornamentais e decorativos encontradas nas melhores "lojas do ramo"...

A partir destas reflexões defini que a Mutilação seria o tema e conceito da proposição, assim, estabeleci o seguinte procedimento: cada uma das três peças seria seccionada em partes desiguais a partir de cortes em ângulos variados na sua longitude criando pequenos blocos irregulares. Mantive as bases intactas e em cada uma delas instalei uma haste metálica para que funcionasse como eixo onde seriam remontadas as peças obtidas da mutilação, intercambiando-as.







Cada fração resultante dos cortes foi perfurada longitudinalmente. 
Esta perfuração teve como finalidade possibilitar a remontagem das figuras destituindo-as da aparência e formato originais. Para aumentar a diferença entre as peças, cada uma das esculturas recebeu uma cor primária: Azul, Amarelo e Vermelho. Assim, as pessoas poderiam manipular tais peças remontando-as do modo que lhes conviesse, criando assim, novas configurações a partir de módulos semelhantes.  




















Portanto, a mutilação, ao contrário de ser um mal se torna um processo, um jogo, estético-interativo no qual os diferentes resultados ampliavam seu sentido e significação gerando novos estágios de compreensão ao mesmo tempo em que suprimia, em parte, o caráter kitsch das reproduções originais, aproximando-as das obras contemporâneas conceitualistas.




Procurei documentar fotograficamente todo o processo em suas diferentes etapas, nem todas as imagens foram recuperadas, mas as que restaram dão uma ideia desta proposição.






Observem, reflitam e compartilhem, agradeço.

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