REFLEXÕES - Arte é mercadoria?


Talvez você já tenha se perguntado se Arte é mercadoria, se não, vamos pensar um pouco à respeito...

Desenho à carvão e tinta vinílica, Isaac
O que chamamos Arte descende de um percurso histórico que começou nos primeiros tempos da humanidade e dura até hoje. Embora seja uma das atividades humanas mais antigas não corresponde necessariamente à sua aceitação incondicional e integral. Suas funções e características mudaram em relação ao seu tempo e seu lugar. O que se entende por Arte numa época não é o que se entende por Arte em outra e mesmo, na mesma época, são vários os modos que as manifestações artísticas assumem. A Arte está presente na vida humana e em todas as civilizações e culturas desde sempre...

Estar presente e existir não significa ser essencial, logo, os modos e meios pelos quais a sociedade a instaura, cria, usa e abusa também mostram diferentes condutas e comportamentos que nos levam a refletir também sobre sua importância econômica e esta é a pretensão desse texto. O foco principal é a Arte Visual, já que minha formação e atividades profissionais se organizam neste campo e tem sido o principal tema deste espaço virtual. Reforço que meu entendimento compreende a Arte como um campo de conhecimento e, como tal, implica em abordá-lo por meio de análises que contemplem sua presença tanto como um fazer quanto um pensar, ou seja, por meio de comportamentos tanto pragmáticos quanto estéticos.

Nos primeiros tempos a Arte Visual parecia estar vinculada aos rituais, à magia e às pretensões simbólicas do ser humano. Na antiguidade vinculada às civilizações, ao poder, aos interesses e metas dos grandes impérios e nações. Na Idade Média e Idade Moderna, dependida ainda da religião, da nobreza e depois da burguesia, o que também continuou acontecendo até o século XIX. A autonomia da Arte só começa a ser conquistada a partir da Idade Contemporânea, no século XIX, com o advento da Modernidade ou Modernismo, quando os artistas passam a confrontar a tradição clássica acadêmica.

A meu ver, Economia diz respeito aos meios de apropriação, extração, transformação, produção e distribuição de bens e serviços destinados à vida, uso e ao consumo humano. Esta definição genérica é proposital e quer cobrir as diferentes atividades que contemplam as transformações que ocorreram e ainda ocorrem na sociedade humana desde seus primeiros tempos. Assim a Arte se enquadra nesse contexto e cobre a realização de bens materiais e imateriais. Tanto a partir das intervenções nas paredes das cavernas, a construção de monumentos, sua ornamentação e "ilustração" quanto a produção de Obras de caráter estético e/ou funcionais que fazem parte desse universo.

Neste sentido os primeiros "artistas" foram os seres humanos da pré-história que praticaram as primeiras imagens e que delas não tiraram nada além de esperança e, talvez, prazer. Na antiguidade eram os artesãos que narraram a saga de seus guerreiros e nações, ilustraram os templos, túmulos e palácios, homenagearam deuses e líderes e, na maioria das vezes, trabalhavam para obter apenas seu sustento, seu alimento. No medievo permaneceram fazendo o mesmo, enaltecendo ainda mais a religião, mas se mobilizaram em corporações para defender seu labor e buscar um pouco mais de respeito e organização.
Na Idade Moderna, a partir do Renascimento, passam a ser reconhecidos pelas suas competências intelectuais e estéticas diferenciando-se dos artesãos e se aproximando do status da nobreza. Têm o reconhecimento como um profissional diferenciado o que também lhes possibilita prestar serviços mais especializados e receber melhor por isso. Atende encomendas e se submete aos mecenas e poderosos.

Pode-se dizer que durante a maior parte do tempo em que a Arte Visual esteve presente na saga do desenvolvimento humano, a práxis artística se caracterizou como uma prestação de serviços especializados. Apenas a partir da Idade Contemporânea, iniciada historicamente pela Revolução Francesa em fins do século XVIII, é que começam a surgir as primeiras tentativas de fazer da Arte uma atividade autônoma e pessoal na qual o artista passasse a ser o idealizador e gestor de sua produção onde a pesquisa estética e material contribuiu para o surgimento do Modernismo em fins do século XIX e para o desenvolvimento da Arte Contemporânea a partir do século XX.

Até agora, as preleções realizadas não apontaram, de fato, para a questão motivadora deste texto: A relação da Arte Visual com o Mercado. Como manda o melhor procedimento professoral, adoto uma definição de Mercado: A troca, cessão ou aquisição de bens e serviços por valores, em geral, monetários.

Pode-se dizer que, desde a antiguidade, há um Mercado para a Arte. Objetos como esculturas ou reproduções de ídolos eram mercantilizadas com fins ornamentais ou votivos. Contudo, a prestação de serviços é mais perceptível do que a mercantilização nos primeiros tempos da Arte. Para a identificação completa de um Mercado de Arte é necessário, além da identificação dos agentes criadores, a identificação de agentes mercantis, de comerciantes, mercadores ou, na língua francesa: de Marchands.

Durante muito tempo na história, os próprios artistas eram os agentes negociadores e buscavam eles mesmos seus clientes para a formalização das encomendas quando definiam as obras, suas características temáticas, técnicas, valores, prazos e pagamentos. Isto caracterizava ainda a prestação de serviço e não necessariamente ações mercantis.

Em torno do século XVIII é que o Mercado de Arte passa a existir com mais especificidade. Comerciantes de materiais e produtos artísticos passam a expor em seus estabelecimentos as obras que obtinham de artistas por meio de trocas por material ou em consignação para venda. Ainda não eram galerias, mas já davam conta de um "negócio" especializado.
O advento dos grandes Salões franceses contribuiu para a publicidade dos artistas aumentando o acesso do público às Obras de Arte e possibilitando a ampliação do seu comércio junto à burguesia e a distinção de novas tendências.

Mas é a emancipação da Arte Moderna que possibilita aos artistas investirem em projetos pessoais, isto implica também em buscar novos públicos. É nesta busca que investem os primeiros grandes Marchands do século XX e, com isto, definem as diretrizes do Mercado de Arte.

É necessário entender então uma mudança do campo da prestação de serviços para o campo da realização de obras personalizadas que, ao invés de atender ao gosto do público, atendiam prioritariamente às proposições dos artistas, uma inversão do processo anterior. Com isto surge também a necessidade da especialização desse mercado, pois, não é o gosto do cliente que importa, mas a proposição do autor e, com isto, a necessidade do convencimento, das relações interpessoais, da negociação.

Ai se instaura o chamado Mercado Primário de Obras de Arte: os Marchands representam os artistas e comercializam seus trabalhos em suas Galerias, assim, passam a promover o comércio de Obras de Arte, fazendo com que, a despeito dos artistas e de suas proposições ou idiossincrasias, eles passem a dominar este contexto subordinando os artistas ao seu domínio resultando, hoje em dia, nas Art Fairs, eventos contemporâneos criados pelas galerias para mercantilizar obras de seus acervos ou de seus representados.

Deste mercado primário, surge o Mercado Secundário, campo dominado pelas grandes casas de Leilões que além de supervalorizarem as obras também especulam no mercado financeiro transformando tais obras em ativos financeiros de alta performance. Neste contexto os artistas e as galerias são deixadas de lado, não participam mais desse processo e as Obras de Arte são tratadas como ativos financeiros, commodities, Mercadorias, é o triunfo do Mercado sobre a criação.

O conceito Marxista de mercadoria define algo que pode ser consumido imediatamente para o atendimento de uma necessidade, portanto desaparece com o uso ou, e ai é o ponto que nos interessa, algo que pode se tornar um Capital, algo com valor em si mesmo e sujeito ao acúmulo e à especulação. É nesse sentido que o mundo capitalista entende a Arte Visual: como um bem mercantil, um investimento gerador de lucros.

Isto contradiz a criação artística como um ato estético volitivo pois, a partir do momento em que a obra existe, passa a ser objeto de mercantilização, fazendo do artista refém do sistema de arte instaurado na sociedade capitalista como um gerador de bens.

Contemporaneamente a dicotomia entre estas duas posições: proposição estética versus produto mercantil, deflagra algumas questões de sobrevivência dos próprios artistas que podem ser analisados sob, pelo menos, dois pontos de vista: o do Artista Propositivo e o do Artista Conformado.

Chamo de Artistas Propositivos, aqueles que têm como fim primeiro o desenvolvimento de processos de criação personalizados contidos no universo da Pesquisa em Arte, cujo desdobramento resulta em Obras de Arte, intervenções, instalações, instaurações, performances e ocorrências estéticas que não visam, a priori, fins mercantis, mas sim o Valor estético. Por isso dependem de investimentos, normalmente a fundo perdido, pois não contam com a certeza da mercantilização de suas realizações. Tais investimentos são feitos pelos próprios artistas por meio de recursos próprios, atividades paralelas, coworkings, coletivos artísticos, residências artísticas ou apoio de instituições públicas ou privadas, empresas ou investidores dispostos a subvencionar seus trabalhos incluindo-os no conceito de economia criativa, ideia que vem tomando conta do mundo atual. Neste caso, tendem a não se caracterizar necessariamente como geradores de Mercadorias, mas como criadores dependentes de subvenção que os apoie e abra caminhos e possibilidades para manter sua atividade criativa.

E chamo de Artistas Conformados aqueles que produzem suas obras a partir das tendências em vigor ou do gosto reinante sem muitas preocupações estéticas, mas objetivando as tendências definidas pelo mercado. Estes artistas se apropriam ou são apropriados pelos esquemas mercantis e se tornam celebridades, personalidades de prestígio no mundo Pop, onde valem mais das estratégias de marketing do que as qualidades estéticas. Normalmente são promovidos pelas grandes galerias, pelas grandes casas de leilões transformando seus trabalhos em ativos importantes no mercado financeiro onde o Preço se sobrepõe ao Valor estético. Neste caso, tais produtos podem ser caracterizados como mercadorias e, desse modo interferem no sistema de arte com ações predatórias concentrando muito investimento em poucos atores gerando o desequilíbrio do sistema.

Enfim, ser mercadoria ou não eis uma questão atual...

Agradeço a leitura e compartilhamento, obrigado.

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