REFLEXÕES - Apagamento e Resistência na Arte Visual

A Arte surge espontânea e vernacularmente no contexto da humanidade lá na pré-história. 
Digo espontaneamente por não depender de qualquer imposição ou ingerência de ordem social ou material e vernacular por surgir das condições e meios disponíveis ao seu redor. 

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Bisões pintados na pré-história, na Caverna de Altamira, Espanha.
Pode-se dizer também que o surgimento da Arte decorreu de atos de criação e de esperança. De criação por evocar os modos, meios e processos do fazer que exigiram capacidades cognitivas e psicomotoras para realizá-la e, de esperança, por constituir imagens de caráter estético/simbólicas, formais e rituais que a projetaram para o amanhã.

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Pinturas rupestres na Serra da Capivara, no Piauí, realizadas entre 17.000 e 25.000 anos atrás.                                                                                                               
Não demorou muito para que as grandes ondas civilizatórias da antiguidade percebessem o potencial catalizador das imagens e passassem a instrumentalizá-las para exercer o domínio sobre o outro. Desde o Neolítico, não se pode ignorar a instrumentalização da Arte em prol e benefício dos sistemas de dominação que vão se instaurando pouco a pouco. Basta recolher alguns exemplos de manifestações daquela época para entendermos isso.

Detalhe da Paleta de Narmer, rei unificador do Egito, na qual são mostrados, à direita, os inimigos decapitados.
As grandes civilizações passam a recorrer aos fazeres artísticos, especialmente visuais, em benefício da propagação e manutenção de suas ideologias e valores instaurados, na maioria das vezes, por meio da força e do poder. As imagens instituídas por eles revelam atos e feitos de líderes guerreiros por meio de narrativas ilustradas de combates e conquistas expostas nos muros e paredes de palácios, templos, túmulos e outros monumentos edificados para explicitação e imposição de seu poder e glória.

Cena de combate entre Romanos e Dácios, na Coluna de Trajano em Roma.
Pode-se dizer que, a partir desse período, promove-se o Apagamento da condição anterior da Arte como um meio de expressão natural, volitivo e espontâneo substituindo-o por um processo de expansão de valores hegemônicos e impositivos ligado diretamente à dominação.

Nesse sentido a ideia de Apagamento corresponde à condição social em que o poder instituído atua no intuito de fazer tábula rasa de valores, identidade de grupos, etnias e nações promovendo o Apagamento Cultural identitário, com o fim de reduzir os anseios de autonomia e liberdade dos dominados impondo-lhes novos valores pela propaganda e/ou pelo medo e com isso, exercer com mais eficiência seu domínio, a centralização e acúmulo de poder.

Percebe-se também o exercício desta estratégia quando se olha para a prática colonialista de apropriação de bens materiais e civilizatórios de grupos étnicos ou nações, travestindo tal prática de “Proteção” por meio de Expedições Arqueológicas e/ou Históricas, destinadas a identificar, recolher e se aproprias de obras e demais produtos culturais como forma subliminar de dominação. Por meio da submissão do patrimônio imaterial aos acervos de suas maiores instituições museológicas toma, simbolicamente, a consciência do outro.
Basta observar o acervo de boa parte dos Museus de História Natural ou de Arte do mundo ocidental.

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Galeria Egípcia, Museu do Louvre, Paris.

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Museu Britânico, Londres, coleção de Arte Asiática.
Olhando o percurso da Arte, pode-se dizer que a produção artística cumpriu sua função social muito mais próxima do poder do que da expressão de sua própria identidade.
Até o século XIX, o gosto acadêmico instaurado e defendido pelo poder da nobreza, igreja e da burguesia tornou-se um padrão hegemônico amparado na tradição clássica acadêmica dominando a produção artística. Afastar-se dele era uma sentença de morte ou ostracismo social e econômico. Ao contrário, manter-se com ela era uma garantia de sobrevivência, sucesso e distinção, um modo de afastar-se do Apagamento. 

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A Coroação de Napoleão como Imperador da França, realizada por Jacques-Louis David, em 1807, representa o gosto da nobreza e burguesia do século XIX, representado pelo Neoclassicismo.
Mas isso não duraria para sempre, as primeiras tentativas de resgate de sua autonomia expressiva e de sua individualidade passam a ocorrer com mais vigor e efetividade com o advento da Modernidade em fins do século XIX.
A atitude conservadora dos defensores da Arte tradicional passa a ser a de detratar e desqualificar os artistas inovadores que, segundo eles, só eram capazes de obter uma mera “Impressão” do sol nascente, agir como “Feras” ou praticar “Bizarrias Cúbicas”, nomeando assim o que seriam os primeiros movimentos Modernos: Impressionismo, o Fauvismo e o Cubismo. Assim os críticos Louis Leroy e Louis Vauxcelles atuavam em defesa e em reforço da visão hegemônica no intuito de Apagar, extirpar da sociedade aqueles que insurgiam contra o status quo dominante.

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Impressões sobre o nascer do Sol, Claude Monet, 1872.

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Henri Matisse, Quarto Vermelho, 1908.

Violin and Pipe, 'Le Quotidien', 1913 - Georges Braque
Georges Braque, O cotidiano, 1913.

Por outro lado, por convicção ou por opção, a Arte chamada de Vanguarda investe e aprofunda suas proposições, provocações e inovações desafiando o gosto reinante. Só bem mais que tais transformações surtiriam efeito. O reconhecimento de suas obras, da capacidade criativa e transformadora destas novas proposições e poéticas só ocorre depois que se entende a Arte como um Campo de Conhecimento Expressão Propositivo e não apenas como um recurso ornamental e decorativo.

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Marcel Duchamp com "A fonte" e "Roda de bicicleta", criador do Ready Made. Dadaísta precursor da Arte Conceitual.

Mesmo assim, até hoje este modo livre de fazer Arte sofre agressões. Recebeu a alcunha de “degenerada”, justificando sua expulsão das galerias e instituições oficiais na Alemanha pelos Nazistas e na Rússia pelos Socialistas o que mostra a dificuldade de manter a liberdade de expressão.

Recentemente, a mostra: Queermuseu - cartografias da diferença na arte brasileira, que reunia obras de 85 artistas como Volpi e Portinari, entre outros, após críticas de movimentos religiosos e do Movimento Brasil Livre (MBL), foi suspensa na galeria em que estava sendo realizada e não pode ser instalada em outras como originariamente previsto.


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Fato semelhante ocorreu no MARCO - Museu de Arte Contemporânea de Campo Grande, MS, por atitude do Delegado da Delegacia Especializada de Proteção a Criança e ao Adolescente que apreendeu um dos quadros da artista mineira Alessandra Cunha Ropre por supor uma pretensa apologia à pedofilia... Estes são fatos que tipificam tentativas de Apagamento hoje em dia.

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Obra de Ropre "Presa" do MARCO em Campo Grande, MS.

Por outro lado, o afastamento da Arte de suas funções pragmáticas, ao contrário de apagar sua presença na sociedade, promove a intensificação por meio de novos processos poéticos, estéticos e investigativos. Pode-se dizer que em resposta às tentativas de desarticulação e Apagamento a consolidou como campo de atuação reconhecendo-a como autônoma e propositiva ampliando os estudos e pesquisas realizadas sobre ela e por meio dela.

A partir do Modernismo a Arte passa a explorar novos processos e proposições estéticas dando vasão às tendências conceituais. A partir de então instaura sua presença como forma de investigação e constitui um campo conhecimento específico que antes não era visível tampouco respeitado.

Na medida em que o aprofundamento da Arte na investigação expressiva lhe traz mais autonomia, personalidade e criatividade também a afasta da classe dominante que, por não conseguir mantê-la sob seu domínio, passa a negá-la, ou seja, tenta apaga-la.
No entanto, não se pode ignorar também que ao mesmo tempo em que havia uma ruptura com o modelo ou padrão de gosto anterior, as vanguardas são sendo adotadas por novos públicos: já que não é possível vencê-la, alia-se a ela.

A Obra de Vincent Van Gogh, A Arlesiana, Madame Ginoux, obteve 40,3 milhões de dólares em leilão da Crhistie em NY.
A nova geração burguesa, que surge a partir da industrialização, instaura o capitalismo predatório e consumista que tem pouco apreço e nenhum compromisso com a tradição e se torna a principal destinatária do espólio da Arte Moderna e investidora da Arte Pós-moderna, cuja preferência resvala e dialoga, quase sempre, com a Indústria Cultural e dialoga com cifras extremamente altas transformando-as em verdadeiras âncoras financeiras prontas a serem renegociadas por valores cada vez mais elevados.

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Andy Wahrol, Campbell's Soup, 1962.

Para esta geração a Arte e os artistas não são mais valorizados pelas suas proposições culturais, estéticas ou conceituais e sim pela sua capacidade de inserção no sistema de consumo regido pelas grandes galerias e casas de leilões que passam a especular com as obras de arte transformando-as em ativos financeiros.

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Rabbit, de Jeff Koons, vendida por mai de 90 milhões de dólares.

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Damien Hirst, "Pelo Amor de Deus", de 2007, caveira incrustrada com mais de 6.000 diamantes, vendida por mais de 100 milhões de dólares para um consórcio de investidores. 

As Obras de Arte, antes negadas, desqualificadas passam a serem leiloadas por valores astronômicos. Seria, quem sabe, o reconhecimento tardio de sua importância? Não, é apenas mais uma estratégia de neutralização ou apagamento menos agressivo, mas igualmente eficiente. Agora, ao invés de confrontá-las parece ser mais eficiente transformá-las em bens de consumo, em produtos mercantis, numa espécie de commoditie e, deste modo, são destituídas de seus valores estéticos e culturais, de suas origens, raízes antropológicas, étnicas ou sociais.

Recolhendo-as aos acervos particulares ou institucionais elas são afastadas de sua identidade, de sua função social e do público. Se antes a apropriação da Arte era exercida pelo poder para usá-la como instrumento de dominação, hoje ele se apropria dela para neutralizá-la, reduzir ou anular sua capacidade de reflexão, contestação e libertação tornando-a refém demonstrando o poder do mercado sobre elas.
Basta observar que, mesmo alguns dos mais radicais e inconformados acabam sendo cooptados pelo processo mercantil.

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Uma obra de Bansky, na Sotheby's, é fragmentada durante o fechamento do leilão diante do público quando atingia o valor de 1,18 melhores de euros, mesmo assim o comprador (anônimo), manteve a aquisição.
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Cranio, grafiteiro diante de uma de suas obras em muro urbano.
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Exposição MayDay de Cranio em galeria paulista, outside/inside...

Isto posto, resta explicitar o lado da Arte, o da Resistência.

Resistênciase refere à reação e enfrentamento contra as tentativas contínuas de esvaziamento promovidas diuturnamente contra ela. Tais tentativas ocorrem tanto no ambiente da sociedade como um todo e também no contexto governamental pela falta ou ineficiência de políticas públicas destinadas ao amparar sua produção ou ensino.

Penso que o fato de não reconhecer ou considerar a Arte e outros campos das chamadas ciências humanas ou sociais com o mesmo valor que se dá às ciências naturais ou exatas é um dos fatores que leva ao seu Apagamento. A lógica do capitalismo é a de valorizar tudo o que seja passível de se transformar em produto e consumo e anular tudo o que não seja transmutado em dinheiro ou poder. Uma estratégia eficiente tem sido a de reduzir a capacidade crítica por meio da inanição da Educação Pública. O que se mostra por meio da construção de um estado de instabilidade contra os profissionais para que permaneçam inseguros, minando sua confiança, levando-os ao desânimo reduzindo sua Resistência.
Basta observar as condições precárias para cumprir as exigências curriculares, pedagógicas em instituições cujas estruturas físicas e materiais não atendem as necessidades básicas e suas especificidades resultando em indicadores educacionais desfavoráveis. Em contrapartida as instituições privadas avançam desmesuradamente.

Tal situação tem motivado a mobilização de seus profissionais em torno de organizações de classe que lutam para estabelecer diálogos com a sociedade e o governo em busca de soluções adequadas para seu ensino.
Grande parte desta resistência é caracterizada pela ação destes profissionais que, independe de ações governamentais, buscam sua qualificação, constroem processos e pedagogias destinadas a suprir ou contornar as adversidades por meio da conscientização, de estratégias proativas e alternativas permanentemente reveladas através das proposições, experiências, metodologias, processos e procedimentos, especialmente no campo da Arte e do seu Ensino.

Este é um dos pontos de Resistência que se mostra, não pelo pessimismo e enfraquecimento das bases, mas pelo otimismo e esforço compartilhado pela produção de conhecimento que subvenciona e reforça o saber nesta área de ensino, independente da ausência de iniciativas ou políticas públicas. Assim realimentam e reforçam a crença de que as coisas podem mudar. Parte, não menos importante da sobrevivênciaa este apagamento, corresponde à presença do ensino emsobreArte que ainda existe nas Universidades e a partir delas.

Neste nível é que se realiza a formação dos Agentes de Mudança aqui identificados como os professores e profissionais em Arte que exercem suas atividades no ambiente social por meio do ensino, da pesquisa e também nos serviços nas instituições de promoção, manutenção e difusão artística.

Resistência é a tônica que sempre marcou a presença da Arte na sociedade e, queiramos ou não, permearam e continuarão permeando nosso campo de Ensino e produção, especialmente em tempos de exceção.

Agradeço a leitura e o compartilhamento, obrigado. 

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