REFLEXÕES - Você acha que macaco faz Arte?

Gesto Gráfico: Desenho a carvão e tinta vinílica sobre papel, Isaac 

Nós, que trabalhamos com Arte, somos sempre desafiados pelo conservadorismo que não perde oportunidade de confrontar a Arte Contemporânea.

A pergunta que abre este texto decorre de um  artigo de dez anos atrás, de 2009, no entanto, a motivação para realizá-lo naquela ocasião, ainda é atual. Na época o estímulo foi uma novela televisiva assinada por Walcyr Carrasco em que o principal tema era a Arte Visual.

O argumento focava a vida de um pintor habituado a expor em feiras de arte em praças públicas. Seu filho, acreditando na competência do pai, toma a iniciativa de convidar a gerente de uma galeria para visitar o atelier dele. Por obra do acaso ou do “destino”, no dia da visita, o atelier é invadido por um macaco que transforma suas pinturas figurativas, de caráter acadêmico, em abstratas. Por maior que fosse o desespero e espanto do pintor, a visitante adora as telas e se empolga a ponto de agendar uma exposição individual em sua galeria e ele acaba por aceitar a oferta. Isso implica em aceitar também a “ajuda” do símio invasor que passa a ser, de fato, o autor das obras e nesse momento se instaura a relação macaco/arte, o que não é incomum por se tratar de ficção. Na época o autor justificou o tema dizendo que queria “desmistificar" o universo das artes. A mim pareceu mais uma tentativa gratuita de desqualificação e desinformação.

Na mesma época, meses antes, este mesmo assunto havia sido tratado pelo saudoso Millor Fernandes que, em um texto, num conhecido periódico nacional, retomara a questão do "macaco artista" rememorando o percurso deste tema no contexto da arte desde a década de cinqüenta do século passado. Juntando todos estes ingredientes: televisão, imprensa e Arte sob a ótica das relações entre imagem, arte e mídia, considerei interessante tratar deste assunto. Na ocasião, era docente na Universidade Federal de Uberlândia, e publiquei uma síntese deste artigo no Correio de Uberlândia em 01/09/2009, na sessão "Opinião", em "ponto de Vista",pag. A2.

Tomando a ideia do Macaco Pintor, voltei mais atrás ainda, ao século XVIII e a partir dali observei a recorrência deste tema na pintura do século XVIII e XIX.
A figura simiesca frequentou obras memoráveis de Chardin (XVIII), Colleville (XIX), Deschamps (XIX), Vollon (XIX) e Von Max (XIX). Motivados pelo aspecto satírico ou, talvez, pela atração que os símios exercem sobre nós em função de sua capacidade de imitar as características humanas: serem "quase gente". Estes artistas realizaram pinturas em que macacos eram retratados como pintores ou apreciadores de arte.


A ficção, por sua vez, explorou inúmeras vezes esta possibilidade simiesca como no conto “Um relatório para a academia”, de Franz Kafka, onde um ex-macaco de circo narra sua transformação em gente, por ânimo e glória de seu amestrador que o mobiliza em torno de um aprendizado para ser humano, à despeito da agressividade e barbárie imposta pelo adestrador ao animal no intuito de "humanizá-lo".

Ao fim e ao cabo, esta parece ser a missão dos amestradores: humanizar a animalidade, já que o que se espera do animal adestrado é um comportamento que o torne parecido conosco. O que pode ser comprovado quando olhamos espetáculos em que os animais são vestidos como se fossem gente e levados a realizar tarefas como se pessoas fossem. Ou mesmo quando atribuímos a eles a responsabilidade de corresponder aos nossos anseios e carências sem respeitar sua "animalidade", ou seja, sua identidade e condição tornando-os reféns de nossos prazeres... escravos de nossas vontades... Existe mais "desumanidade" que isto?

Voltando ao ponto: Era comum vermos animais usados como atração em espetáculos circences, ainda bem que, hoje em dia, isto já está fora de moda, mesmo porque a conscientização e o respeito aos animais vem crescendo nos últimos anos entendendo-os como seres vivos dignos de respeito tanto quanto devemos a nós mesmos. Argumento semelhante a este obteve sucesso também no cinema, com o “Planeta dos Macacos”, sob a direção de Franklin J. Schaffner, realizado em 1968, em que um astronauta, interpretado por Charlton Heston, aporta num planeta governado por macacos evoluídos, onde a espécie humana é primitiva. Ao longo da trama se descobre que o planeta é justamente a terra, no futuro, destruída por um conflito nuclear, fato que possibilitou a evolução dos símios e a “in-volução” humana. Este filme instaura uma saga que dura até 1973. O tema se torna série televisiva que inicia e termina em 1974. É novamente revisitado pelo cinema em 2011 pelo diretor Rupert Wyatt e depois por Matt Reeves em 2014 e 2017 fechando uma trilogia.

Outro exemplo da humanização do animal pode ser lembrada na fábula de 1945, “A revolução dos Bichos” de George Orwel. Em que os animais de uma fazenda se rebelam contra os maus tratos e tomam o poder em busca de sua liberdade e autonomia. Mas, ao delegar entre eles as tarefas do poder, são contaminados por este mesmo poder e se tornam cada vez mais humanos, no pior sentido de humanidade: ditatoriais, autoritários e repressivos. Uma metáfora de nossas idiossincrasias totalitárias e xenofóbicas.

No entanto a possibilidade de evolução dos símios nos parece remota, na medida em que é pouco provável que o seu percurso evolutivo possa ser cumprido em tempo recorde, especialmente pela lentidão que este processo exige. Portanto, só resta a eles a possibilidade da imitação e, com isto, se parecerem ironicamente menos animais e um pouco mais humanos.

Voltando ao ponto inicial, a polêmica do "macaco artista" parece ter sido instaurada por Desmond Morris, pintor e zoólogo americano que, na década de 50 do século passado, estimulou um chimpanzé a desenhar e a pintar, levando Tyler Harris a escrever um livro valorizando o processo “criativo” de Congo, o macaco pintor “descoberto” ou “amestrado” por Morris. A polêmica instaurada por Morris/Tyler, veiculada na década de 60 num programa de televisão sobre animais que Morris manteve nos EEUU, mobilizou a crítica em torno da possibilidade de um macaco ser capaz de produzir arte. Instaurada a polêmica, Picasso, ao ser presenteado com uma obra de Congo, bota lenha na fogueira imitando o andar do macaco e dizendo serem “irmãos de armas”, ou ainda, Salvador Dali, colocando ainda mais lenha na fogueira ao dizer que: “A mão do chimpanzé é quase humana; a mão de Pollock é totalmente animal”. Inadvertidamente, tanto Picasso quanto Dali acabaram por dar corda ao debate em curso na época.

 
Mais tarde, surgem outras estrelas da arte simiesca, agora gorilas, é o caso de Michael e Koko, dois exemplares de pesquisa sobre inteligência animal, da Universidade de Stanford, coordenadas pelo Dr. Penny Patterson. Independente dos objetivos da pesquisa, que seriam os de descobrir seu nível de inteligência, mediante a capacidade de compreensão da linguagem humana e de símbolos como os da geometria e da matemática. O que é possível de obter com certa freqüência, admitindo que os experimentos também promovem o treinamento intensivo destes animais, tornando-os aptos a reagir aos estímulos construídos pelo ambiente da pesquisa, o que nada mais é do que condicionamento operante. Tal procedimento também pode levar a obtenção de sucesso no contexto dos fazeres da arte, como no caso de ocorrências gráficas ou pictóricas. Mesmo considerando que estes gorilas são os protagonistas de um programa de apoio a um projeto institucional de ajuda para a preservação da espécie, não se justifica a manipulação da opinião pública em torno da ideia de existência de uma "arte simiesca". Nestes ambientes, são estimulados também a exercerem seus “dotes” artísticos mediante diferentes estímulos externos.

  O caso destes e dos outros macacos, sempre esteve envolto numa aura de desconfiança e de incredulidade, o que coloca em dúvida sua capacidade de pensar/imaginar por conta própria, já que, a performance dos bichos era sempre presenciada pelos pesquisadores/amestradores. Outro aspecto interessante no limitado universo destes animais artistas é que sempre se expressam segundo uma poética não figurativa, não naturalista, impossibilitando aos avaliadores o confronto com outras manifestações artísticas reconhecidas, ou seja, a opção dos símios sempre foi pela arte “Abstrata”. Como dizia Morris “Expressionismo abstrato lírico”, mais próxima das garatujas infantis do que da Arte propriamente dita. Além disso, a opção pela expressão em superfícies bidimensionais é providencial, já que é mais fácil controlar o espaço onde estas “criações” são realizadas.
No caso de Congo, numa cadeira de criança adaptada para a colocação dos papéis e das tintas, cujo “estilo” preferido por ele era o “Fan”, ou seja “Ventilador”, em que a ação era realizada em linhas verticais, radiais tendo como eixo a proximidade com o seu corpo, mantendo como limite máximo o prolongamento de seu braço. No caso dos gorilas a delimitação também ocorre pelo alcance de seu corpo e o campo de ação e deslocamento em que se encontram.

Tanto uns quanto outros são essencialmente “gestuais”, daí a comparação com Pollock feita por Dali. É também interessante notar que nenhum deles “opta” pela expressão tridimensional como a modelagem, a escultura ou qualquer modalidade expressiva que se afaste de lápis, pincéis, tintas e papéis. Outrossim, não demonstram nenhuma ação programática, intencional ou propositiva. Assim acabamos nos afastando mais e mais da possibilidade de termos um macaco pintor, do mesmo modo que nos afastamos igualmente da possibilidade de termos um papagaio cantor...

 
Por outro lado a polêmica não se encerra por aqui sem mais nem menos, mas indica um outro rumo, rumo este pouco explícito que é o da crítica velada à condição da Arte Moderna e Pós-Moderna. Como se sabe, o Modernismo foi instaurado sob protestos e as críticas ácidas do conservadorismo vigente no fim do século XIX e início do século XX. Romper com um modelo conservador como era o da arte Clássica tradicional e mesmo com o Academismo que vigorava em alguns casos, foi imperdoável. A reação foi intensa e contínua excluindo do meio artístico aqueles que não se submetiam ao modelo vigente. Um pequeno exemplo disso ocorre com os artistas na França com a instauração do “Salão dos Recusados”, aberto em oposição e protesto à recusa de participação de vários artistas inovadores no tradicional Salão de Paris, em 1863, destinado exclusivamente aos artistas da Real Academia Francesa de Pintura e Escultura. Mais tarde, um bom número dos artistas recusados pelo salão oficial, foram mentores e difusores do Impressionismo e de outras tendências poéticas.
Entretanto, os defensores da arte conservadora e tradicional não se conformaram e continuaram detratando os artistas que, segundo eles, só eram capazes de obter uma mera “Impressão” do sol nascente, agiam como “Feras”, nomeando o que seria depois o Fauvismo ou só eram capazes de praticar algumas “Bizarrias Cúbicas”, nomeando também o que veio a ser o Cubismo. Tais ditos, do crítico francês Louis Vauxcelles, reforçavam a visão conservadora, ao mesmo tempo em que estimulavam os vanguardistas a continuar sua sina de provocações e inovações que só surtiriam efeito mais tarde, com o reconhecimento de suas obras e da capacidade criativa destas novas poéticas.
Até hoje, aquela maneira de fazer arte, cuja maior agressão foi receber a alcunha de “degenerada”, justificando sua expulsão das galerias e instituições oficiais, da Rússia pelos Socialistas e da Alemanha pelos Nazistas, ainda sofre as mesmas críticas negativas.

No Brasil, Monteiro Lobato, publica em dezembro de 1917, no Jornal da Noite, do O Estado de S. Paulo, uma crítica intitulada: Paranoia ou Mistificação” na qual tece comentários desairosos e pesados sobre uma exposição dos trabalhos da artista Anita Malfatti, em que diz: “Seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura". Ainda aqui, em 1968, um obscuro escritor, C.D´Agostino, publica um livro intitulado: "Arte Moderna" uma Monstruosidade"... onde dedica 232 páginas para denegrir e tentar defenestrar a Arte Moderna de seu lugar na cultura segundo um olhar enviesado e calcado nas suposições de uma estética maior, verdadeira, obtida da tradição acadêmica, contra o que acredita ser um ataque à tradição. Mais recentemente, o jornalista Luciano Trigo publicou, em 2009,  "A Grande Feira: uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea", onde critica a Arte Pós-Moderna, ou contemporânea, sob os mesmos critérios de seus pares anteriores.


Recentemente, em 2017, 100 anos depois das críticas ferrenhas de Lobato à exposição de Anita Malfatti, acontece o cancelamento da exposição "Queermuseu" em Porto Alegre, revelando também a face dessa incompreensão, intransigência e tentativas de apagamento da presença de manifestações artísticas que desafiam o senso comum e o conservadorismo desde o século XIX.

Contudo, mesmo veladas ou travestidas de humor e de graça, volta e meia esta mesma crítica ácida e repressora retorna, feita e difundida subliminar ou explicitamente pela mídia, colocando novamente uma pitada de desconfiança sobre a Arte Moderna, sugerindo que é possível vê-la realizada por qualquer um, inclusive, por um macaco.
No fundo, ainda sofremos as investidas daqueles que não se conformaram com as transformações da Arte na contemporaneidade que, fugindo ao seu domínio, desafiam o conservadorismo.

Agradeço a leitura e seu compartilhamento.



2 comentários:

Raphael Alves disse...

Caro, professor Isaac. Saudades das suas aulas e de nossas conversas. Continuo, contudo, acompanhando seu blog. Quanto a tudo isso. Quero lembrar que a racionalidade pode até ser exclusividade do homem, mas o sentimento, não.
A arte é iconográfica, portante alvo do signo estético por excelência.

Leise Paim disse...

É verdadde, e confundindo o leigo mais do que esclarecendo. Daí a importância deste blog, que tem um conteúdo muito bom e importante para o nosso enriquecimento. Já está citado no meu, que também procura contribuir de alguma forma, pois só a sala de aula não dá conta de tão importantes informações. Espero que consiga tempo para dar continuidade a este trabalho. Parabéns.