REFLEXÕES – A formação em Arte Visual: geração espontânea ou projeto de ensino?

Aquarelle, foto digital, Isaac.
Há alguns dias, participei de uma reunião na qual surgiu uma questão extremamente importante: A Formação em Arte Visual. Como docente de carreira e com uma trajetória de mais de quarenta anos nesse universo, acredito ter vivenciado essa questão sob diferentes óticas então não posso deixar passar em branco uma oportunidade como essa, assim resolvi tomar este tema para mais uma Reflexão.

Já coloquei em discussão, nesse ambiente, vários aspectos pertinentes à existência da Arte Visual desde as concepções, teorias e hipóteses sobre seu surgimento, até sobre sua trajetória social e formativa e mesmo sabendo que muitas pessoas que percorrem os ambientes virtuais nem sempre têm tempo, interesse e, tampouco, paciência para ler algo que vá além de 15 segundos eu sempre me pergunto: Porque continuo fazendo isto?  A resposta ou justificativa que me mantém animado para continuar produzindo algo “inútil” é o seguinte: “Conhecimento é pra compartilhar”! Tenho adotado este lema para permanecer fiel ao propósito de compartilhar informações, embora tenha sempre a sensação de estar “chovendo no molhado”...

A Arte é um campo de conhecimento! 
Já afirmei isso anteriormente, mas quero deixar essa afirmação bem clara, pois o desdobramento dessa reflexão depende desse pressuposto mínimo.

Em 1996, defendi meu Mestrado em Educação na Universidade Estadual de Londrina com a dissertação: Vertentes para o Ensino em Arte Visual, publicada em livro pela EDUEL em 1997. Nada de mais se não tivesse dedicado este trabalho justamente à análise de como a formação nessa área havia se desenvolvido ao longo do tempo. Para abreviar: selecionei três Vertentes de formação: a do Artista ou Produtor; a do Especialista e a do Professor. Tais categorias foram usadas para identificar as áreas de produção de conhecimento e de constituição dos projetos pedagógicos nesse campo de ensino. Tal categorização pretendia clarear os modos como os currículos eram formatados para atender a estes diferentes propósitos.

Cabe ressalvar, entretanto, que há no “senso comum” uma concepção de que a existência da Arte Visual é algo espontâneo e subjetivo, ou seja, algo que aparece “por acaso” na humanidade e, por isso, não requer conhecimentos específicos. Esta concepção falaciosa não entende ou admite que a Arte seja um campo de pesquisa, de investigação, de experimentação nem que tenha uma base epistemológica nem que seja capaz de produzir teorias ou concepções próprias. Portanto, não depende de formação específica nem de ensino formal, é algo que “qualquer um” pode fazer, basta ser “auto-didata”, ter ou adquirir habilidades motoras e/ou imitativas para produzir imagens e pronto: ai está o artista.

Minha defesa caminha no sentido oposto e afirma que: A formação artística é essencial tanto quanto é essencial a formação nos outros campos do conhecimento considerados ou não “científicos”. Se a sociedade não admite a formação espontânea de engenheiros, médicos, químicos, físicos ou advogados, entre outras profissões em que o controle da qualidade ou do mercado limite o exercício profissional seria muita hipocrisia desconsiderar a especificidade do saber artístico.

A conquista pelo respeito ao Ensino da/na/em Arte, especialmente em nível superior em cursos de Graduação e de Pós-Graduação, é o resultado de um percurso recheado de lutas, de convencimento e de credibilidade para que a sociedade reconheça a presença e a importância da Arte no contexto social e cultural e não só como expressão ou apenas como um produto para ornamentação, espetáculo e entretenimento, mas principalmente como uma área de CONHECIMENTO.

Acredito ter deixado claro que a Arte é um campo de Conhecimento Específico e seu Ensino Formal uma condição essencial para sua preservação, aprofundamento, difusão e consolidação na sociedade contemporânea.

A preparação formal do Artista ou Produtor de Obras de Arte é uma das vertentes de seu Ensino.

Vale a pena voltar no tempo para apontar alguns aspectos do exercício da Arte, como compreendo, para argumentar em prol dos processos de formação nele envolvidos.
De novo: a Arte Visual surge na pré-história. Não se sabe, de fato, o que motivou o ser humano a criar as primeiras imagens. Admite-se que tivessem finalidades ritualísticas com fins propiciatórios, admite-se também que fossem manifestações de sua imaginação e fantasia. Independente das motivações que a determinaram, dependia de um fazer pragmático de base cognitiva e psicomotora que, pelo sim pelo não, passamos a chamar ou entender como Arte.

Pode-se dizer que, naquela época as manifestações artísticas eram espontâneas e decorriam de seu próprio aprendizado: pessoal, auto didático, portanto, informal. Este processo permaneceu assim por muito tempo. Na antiguidade tal habilidade ou artesania era aplicada na ornamentação dos palácios, templos e túmulos, o fazer dos artistas não se distinguiam de outros profissionais.

Na Idade Média, surgem as Guildas, corporações de ofício, que reuniam os profissionais em cada uma as diferentes áreas para organizar a prestação de serviço quanto à especificidade, qualidade e valores. Assim surgem as Guildas de Artistas. No entanto, a Guilda era uma associação profissional e não de ensino, o ensino era praticado nas oficinas dos artistas. O Mestre, normalmente o proprietário, assessorado pelos Oficiais que eram os profissionais habilitados para o exercício dos fazeres artísticos e os Aprendizes, auxiliares que eram iniciados neste campo dentro das próprias oficinas e durante muito tempo. Nesse sentido, a prática artística não era livre ou liberal, mas um trabalho corporativo e restrito aos Mestres, donos das oficinas.

A primeira mudança acontece no Período Moderno, com o Renascimento. A fundação das Academias de Arte a partir do século XVI. A primeira delas foi a Accademia di Disegno de Giogio Vasari, em 1562 em Florença; depois a Academia dos Carracci, Annibale, Agostino e Ludovico, em 1585, em Bolonha e a Accademia di San Lucca, de Frederico Zuccari, em 1593, em Roma. Depois começaram a aparecer em outros países da Europa culminando no surgimento das Academias de Belas Artes na França que acabou marcando a formação em Arte no Brasil, por consequência da vinda da Missão Artística Francesa no século XIX.
As Academias foram as primeiras instituições formais para o ensino de Arte Visual. O Projeto Pedagógico delas se baseava em um sistema rígido de ensino que tomava por base a cópia do mundo natural e no desenvolvimento de habilidades manuais. Em geral inspirados nos modelos greco-romanos, no desenvolvimento de estampas e ornatos, estudos de anatomia e modelo vivo, desenho geométrico e perspectiva, além de filosofia e história. Este projeto é consolidado pelas Academias de Belas Artes francesas que acabaram por  influenciar o ensino de Arte tanto na Europa quanto nas Américas e demais regiões do globo.
Como se sabe, este processo de ensino investia principalmente nas habilidades psicomotoras, na virtuose performática do fazer sobreposto à pesquisa e à invenção.

A segunda e grande mudança ocorre com o advento da Modernidade em fins do século XIX, quando os artistas se rebelam contra o modelo clássico e acadêmico tradicional e partem para a investigação, pesquisa e exploração de novos recursos materiais e novas proposições estéticas. Esta guinada é radical e estabelece o que se passou a chamar de Arte Moderna, Modernidade e, mais tarde, no século XX, de Pós-Modernidade.
Com tais mudanças surge outra questão: Como deve ser o Ensino neste novo campo de criação artística. O modelo tradicional e acadêmico não dá conta deste novo tempo e, ao mesmo tempo, não há um modelo e sim, muitos modelos, ou seja, muitos “ismos”. Os Manifestos e Movimentos que fazem surgir novas proposições poéticas não trazem em si novos projetos pedagógicos. O desenvolvimento social e industrial em curso demanda por novas proposições estéticas. O poder dominante não se conforma mais com o gosto burguês da aristocracia e da nobreza, portanto, é hora de mudanças.
O apelo mercantil e industrial instaura uma polêmica, a tendência do desaparecimento do artesanato na medida em que os produtos industriais não preservavam os fazeres manuais. Em defesa do artesanato surge, na Inglaterra, o Movimento Arts & Crafts que recorre à luta pela preservação das habilidades manuais no mercado de bens de consumo em oposição à produção industrial. Na Alemanha, acontece o oposto: surge a Escola Bauhaus que pretende e tem por meta criar uma relação interativa entre os Artistas e a Indústria. Nesse sentido, a artesania e a arte não seriam retiradas ou ignoradas nesse contexto, mas estariam integradas em um novo modelo.

Obviamente nem um nem outro saiu totalmente vitorioso deste processo. O Arts & Crafts se desdobrou com a companhia de Willian Morris, com o Art Nouveau, depois com o Artdeco que acabaram por “sair de moda”. A Bauhaus conseguiu traduzir a estética artesanal numa estética industrial, possibilitando o surgimento do Desenho Industrial e do Design contemporâneo.
Considero que o que restou deles foi o desdobramento de ambos numa situação alternativa que contemplou aspectos de um e de outro.

Estas circunstâncias deram margem ao surgimento de novos Projetos Pedagógicos. No Brasil, o primeiro deles foi o dos cursos de Artes Plásticas que substituíram os cursos de Belas Artes, desagregados pelos movimentos Modernos do século XX, o segundo, Educação Artística e o terceiro, hoje vigente, de Artes Visuais. Com exceção da Educação Artística, destinada exclusivamente à formação de Licenciados, os dois outros possibilitavam tanto a formação de Licenciados quanto de Bacharéis.
De modo geral os projetos pedagógicos destes cursos contemplam disciplinas de formação conceitual e pragmática, tanto no contexto da Arte quanto no do Ensino. As Disciplinas de formação conceitual se concentram nas Teorias que dão amparo ao conhecimento da Arte como História, Estética e outras correlatas que possibilitam ampliar a compreensão, análises e relações com os demais campos do conhecimento. As pragmáticas assumiram a condição de Oficinas, antes nomeadas de Ateliers no ensino tradicional. Embora o conceito de Oficina fosse herdado do Movimento Arts & Crafts e da Bauhaus, no contexto atual são chamados de Laboratórios, de um modo ou de outro são destinados à introdução, exercício, investigação e desenvolvimento de práticas artísticas e de suas poéticas.

Agora, chamo a atenção para o fato de que estes novos modelos, mesmo que se dediquem à formação de Bacharéis, contemplam não só a formação prática, ou seja, as habilidades e domínios psicomotores, mas também os domínios cognitivos e, simultaneamente, a experimentação, inserção, convivência e desenvolvimento de processos poéticos. Considero que tais projetos são capazes de promover a formação de pessoas mais integradas às condicionantes sociais vigentes já que dialogam com os dois ambientes: o da práxis artística e o do conhecimento artístico. O Artista ou Produtor artístico contemporâneo, como um investigador ou pesquisador em potencial, não pode prescindir da base conceitual, histórica e filosófica, tanto quanto, não pode prescindir também do exercício e da experimentação estética e pragmática das poéticas expressivas com as quais dialoga, lida e convive.

Neste momento posso destacar a segunda vertente: a de formação do Especialista em Arte Visual. Chamei de Especialista ao profissional, egresso dos cursos de Artes Plásticas, Educação Artística ou Artes Visuais, que opta por se dedicar aos estudos, investigação e pesquisas para o desenvolvimento e aprofundamento dos estudos sobre Arte Visual como objeto de estudo enquanto campo de Conhecimento.  O diferencial é que, esta pessoa, opta por não exercer os fazeres pragmáticos das poéticas artísticas, mas se dedica aos seus desdobramentos teóricos e conceituais. Nesse caso, tais profissionais, podem atuar no Sistema de Arte nos segmentos não expressivos, mas tão importantes quanto.
São estes profissionais que atuarão como Curadores, Gestores, Críticos, Pesquisadores, Investigadores, Administradores em instituições de Arte Visual públicas ou privadas, bem como, no contexto comercial como galerias e casas leiloeiras. 

Considerei a terceira vertente como a do Professor, ou seja, o profissional que atua no campo do Ensino, neste caso, no Ensino em Arte. Note-se a preposição em e não de. Esta diferenciação é necessária ao considerar que de implica em finalidade, ou seja, pode dar a entender, por exemplo, que se refere à formação do artista, ao passo que em, estabelece uma ideia de relação, de campo ou contexto, por isso a usei.
A formação do Professor, ou seja, do profissional que se dedica ao Ensino no campo da Arte Visual se dá em dois níveis. O primeiro é o graduado e o segundo, pós-graduado. A graduação é realizada dentro em instituições de Ensino Superior em cursos de Licenciatura em Educação Artística, Artes Plásticas ou Artes Visuais. Esta formação prepara o profissional para atuar no Ensino Fundamental e Médio.
A pós-graduação também é realizada em instituições de Ensino Superior em cursos de Aperfeiçoamento, Especialização, Mestrado e Doutorado, neste caso, tais profissionais podem atuar no Ensino Superior, desde que possuam Mestrado e/ou Doutorado.
Cabe destacar que o profissional que atuará no ensino fundamental e médio deve frequentar disciplinas de caráter didático/pedagógicas constantes das estruturas curriculares dos cursos que o preparam. No entanto, para atuar em cursos de Nível Superior, não há qualquer referência à preparação didático/pedagógica para este exercício profissional. Um Bacharel pode realizar um Mestrado ou Doutorado para atuar como Professor no ensino superior de graduação e de pós-graduação sem qualquer formação pedagógica.
Embora isso seja estranho, é o que acontece no contexto educacional atual, nesse sentido, reforça-se a condição de que a o Bacharel em Arte Visual não se destina apenas à formação para a produção Artística, mas também para todas as demais áreas de atuação profissional disponíveis na sociedade.

Logo, os Projetos de Ensino na área de formação em Arte Visual devem contemplar as diferentes possibilidades existentes e emergentes, ampliando seus leques de atuação para corresponderem às expectativas dos estudantes e, principalmente, da sociedade na qual estão inseridos.

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