REFLEXÕES - Arte ou Artes?

Desenho a carvão e pastel sobre papel, Isaac.
Arte é um campo do conhecimento e, para mim, não há dúvida de que é um dos mais interessantes. Uma questão que sempre me incomoda é ouvir referências a ela no plural: Artes. Daí a dúvida, o que é melhor: Arte ou Artes?

Acredito que chanar de Artes seja resquício da tradição ao considerar a existência de vários tipos ou categorias de Arte: Maiores ou menores, liberais ou artesanais, aplicadas ou expressivas, marciais ou estéticas, portanto, tudo que recorresse ou identificasse uma certa habilidade no fazer era, genericamente, identificado como Arte. Arte culinária, Arte do futebol, enfim, ao tomar por referência o desenvolvimento, aplicação ou resultado de habilidades executivas, pode-se dizer que tudo é Arte.

Por outro lado, em outros campos do conhecimento, mesmo que tenham diferentes subáreas, não são assim entendidos: Não se fala em Biologias para referir aos seres humanos, aos animais, aos vegetais ou aos micro-organismos; Não se fala em Químicas quando se à Química Orgânica ou Inorgânica; Tampouco se chama de Físicas, quando se fala das diferentes teorias ou aos seus campos da estudo, que são muitos, como a Termodinâmica, Mecânica, Ondulatória e Acústica, Ótica ou Relatividade. Não se fala também de Geografias, mas sim em vários recortes de abordagem sobre ela, seja sobre a terra, Geografia mesmo ou sobre os astros, a Geografia Astronômica ou ainda sobre os seres humanos: Geografia Humana, sem preocupação com uma ou várias geografias.

Tomando por princípio que a Arte é também um campo de conhecimento, parece mais apropriado se referir a ela no singular e não no plural, Arte e não Artes. Obviamente os conservadores de plantão podem discordar e argumentar contrariamente evocando, com já disse, a tradição que sempre se refere a ela no plural e recorrerão aos argumentos também aqui apontados relacionando tais argumentos à tradição que distinguiam as Artes Maiores das Menores, considerando Maiores a Arquitetura, a Pintura, a Escultura, por exemplo, e Menores todas os modos de artesanato ou utilitários. As Maiores eram também chamadas de Liberais, que dependiam da idealização e cognição, evocando a Escolástica Medieval na qual se referiam às profissões ou "Artes" dos homens livres que eram educados segundo o Trivium -Lógica, Gramática e Retórica e o Quadrivium - Aritmética, Geometria, Astronomia e Música. Menores também chamadas de Artes Mechanicae, ou Mecânicas que se referiam à produção, em geral destinada aos escravos, como a realização de objetos utilitários, adereços ou simplesmente à repetição e reprodução. Assim o plural entrou na História da Arte. Bons argumentos, que justificam tais explicações, mas não facilitam a compreensão de sua essência estética, conceitual e poética.

Para tentar explicar, temos que recorrer aos ensinamentos de alguns autores que destacaram a Arte sob um olhar restritivo, ou seja, menos especulativos. Alexander Gotlieb Baungartem, em 1750-58, ao publicar seu livro: Estética, a toma a abordagem sobre a Arte como científica e não apenas filosófica, trazendo um novo olhar sobre as questões da essência da Arte. Mais tarde,  Benedetto Croce, em seu Breviário de Estética, de 1946, reivindica, a autonomia da Arte como forma de conhecimento autônomo, específico intuitivo e expressivo, oposto à lógica e à racionalidade positivista e distingue forma e conteúdo e não se refere a ela no plural, mas no singular. Definí-la como autônoma e campo de conhecimento induz ao entendimento, ao meu ver, de que é una e indivisível.

Para justificar essa posição é necessário admitir e reforçar o pressuposto elementar de que a Arte é um todo, único e indivisível e que se distingue a partir de suas manifestações. Tais manifestações, elas sim, são distintas e muitas, mas partes de um todo. Deste modo é possível justificar que a Arte é uma só mas que suas manifestações ocorrem em Campos e Modalidades diferentes, mesmo que sua essência expressiva seja uma só.

Para melhor entendimento podemos categorizar estes Campos e Modalidades. Portanto, vamos chamar de Campo ao contexto fenomenológico no qual a manifestação ocorre: Visual, Sonoro, Cênico, Literário e Audiovisual. Por Modalidades podemos chamar as subcategorias nas quais ocorrem as manifestações, organizando-as de acordo com as Qualidades Sensíveis necessárias à sua realização e/ou apreensão e sua transformação em Substâncias de Expressão.

Neste caso é possível agrupar sob o campo Visual as manifestações tradicionais como o Desenho, a Pintura, a Escultura, a Gravura e as mais recentes como a Fotografia e os demais meios de configuração visual que utilizam as Qualidades Sensíveis da visão.
No campo Sonoro, em termos de Arte, só é possível nos referir à Música já que é a única modalidade que se ocupa exclusivamente das Qualidades Sensíveis do som.
Como campo Literário, pode-se destacar as manifestações estéticas que se utilizam das Qualidades Sensíveis da fala e do verbo como, por exemplo, a poesia, o romance e demais modalidades escritas destinadas à produção estética.
No campo Cênico, pode-se entender as manifestações que ocorrem no contexto cênico cujas Qualidades Sensíveis recorrem ao corpo, ao gesto, ao movimento e sua relação com o espaço cênico e sua constituição.
Pode-se destacar ainda, dentro destes campos, modalidades sincréticas, ou seja, aquelas que reúnem mais de uma subcategoria em uma mesma expressão como é o caso, cinema, do vídeo ou do audiovisual, que se valem de imagens, movimento, som, texto na consecução de um mesmo fim ou objetivo estético. O sincretismo admite, numa mesma modalidade, o uso qualidades sensíveis ou substâncias expressivas para a realização de uma só manifestação estética.

Qualidades Sensíveis são as manifestações fenomênicas do mundo natural como a Luminosidade, Espacialidade e Temporalidade que, para serem interpretadas e transformadas em manifestações estéticas e que dependem de observação, interpretação, manipulação, tratamento e organização. Na medida em que  tais qualidades são "operadas" sofrem ressignificação e se tornam Substâncias de Expressão na medida em que servem às estratégias discursivas para realização de Obras de Arte.

Quando o ser humano pré-histórico observou os animais que circulavam no seu meio ambiente e dos quais dependia para sua sobrevivência, apreendeu suas Qualidades Sensíveis como formato, volume, movimento, cor, textura e demais aspectos que os distinguiam das outras coisas do mundo e, a partir disso, interpretou tais qualidades por meio de sua cognição e deu a elas a condição de Substância de Expressão.
Assim a Luminosidade é interpretada de dois modos: como variações de intensidade, luz e sombra, chamadas de variações ou gradações tonais e de frequência, como as cores obtidas da percepção ótica do mundo, criando imagens artificiais que se referiam ao que via; A espacialidade interpretada como horizontalidade, verticalidade, diagonalidade e profundidade, representadas como acima, abaixo, lateralidade e distância configurando o espaço virtual da imagem. A temporalidade, muito difícil de interpretar... o mundo natural é constituído pelo movimento, pelo deslocamento no espaço. As coisas se movem e também nos movemos, mas não é fácil representar ou reproduzir isto em imagens planas, fixas em superfícies, logo, reproduzir o efeito de movimento na Arte demorou bastante, praticamente, até o século XIX, para que as imagens pudessem imitar o movimento das coisas.
Assim configuramos a Arte Visual: por meio de Substâncias Expressivas apropriadas do mundo e interpretadas como formas, texturas, volumes, dimensões, cores, sombras e luzes...
O mesmo podemos dizer da Música. As Qualidades Sensíveis do som são interpretadas como Substâncias Expressivas na medida em que tais sons são reinterpretados a partir de suas qualidades como frequência, volume, duração, timbre e seus usos como percussão, ritmo, melodia, harmonização e outras Estratégias Expressivas desenvolvidas pelas manifestações musicais que conhecemos.
Na Literária, as Qualidades Sensíveis são obtidas originariamente da expressão vocal que deu origem a fala e depois sua sistematização em linguagem e na escrita. Assim tais qualidades se tornam Substâncias de Expressão na medida em que se usa a Palavra Escrita como manifestação com o fim de produzir efeitos estéticos, Arte, por assim dizer.
No campo cênico, são utilizadas como Substâncias de Expressão, o corpo, o espaço cenográfico, o movimento, a gestualidade adicionando cenários, iluminação, coreografia, sonoplastia e outros meios para criar efeitos de sentido de presença performática na atuação, interpretação ou dança.
No campo do Audiovisual, todas as outras modalidades vão contribuir para a produção dos efeitos de sentido de realidade, sugestão, ilusão ou virtualização capazes de mobilizar mais sentidos do que as demais modalidades expressivas.
É necessário entender ainda que estas Modalidades não são estanques, podem ser utilizadas de modo Híbrido, ou seja, uma se apropria de outra para produzir outros efeitos de sentido como, por exemplo, objetos ditos Mix Média que associam alguns recursos obtidos da escultura, do movimento ou da pintura, até o estágio que dissemos Sincrético, no qual várias modalidades são usadas como forma ou meio de expressão como o Audiovisual.

Espero ter contribuído para sua reflexão sobre a controvérsia da distinção entre Arte ou Artes já que defendo a ARTE como campo de conhecimento e expressão Único e Indivisível...

Agradeço a leitura e seu compartilhamento, muito obrigado.