Para as pessoas que estão fora do sistema, do mercado e do contexto da Arte é difícil entender. Como também é difícil entender por que o passe de um jogador de futebol atinge valores estratosféricos só para mudar de time. O mesmo acontece com vários esportes de elite em que personalidades do tenis ou golfe arrecadam milhões para fazerem aquilo que gostam e têm habilidades para fazê-lo. Nesse caso, talvez a pergunta não seja se valem isso, mas por quê valem isso?
Valorar uma Obra de Arte ou a performance de um tenista pode ser difícil e talvez, aquilo que se atribua a uma ou a outro não seja, de fato, realista.
Contudo, esses fenômenos econômicos são comuns no mundo capitalista, então é melhor se acostumar...
Voltando para a questão da Arte e do mercado, pode-se tentar buscar algumas razões ou motivos para explicar por que algumas delas alcançam altos valores. Não é a materialidade da obra como, por exemplo, o suporte, os materiais ou a técnica, nem mesmo a habilidade do artista que determina quanto ela vale.
Há diferenes fatores que podem interferir no valor de uma Obra de Arte. Um deles é a originalidade. Muitas obras trazem informações sobre sua autoria, seu tempo, seu lugar, sobre as circunstâncias sociais, culturais que lhes deram origem e, em geral, são únicas e exclusivas. Nesse caso é comum que sejam altamente valoradas, especialmente as obras do passado que, além do valor artístico ou estético acumulam valor histórico. Nesse caso museus, instituições culturais e mesmo colecionadores privados as supervalorizam por razões como estas ou como potencial investimento.
Um exemplo que atende a estas razões é a obra de Leonardo Da Vinci: "Salvator Mundi", produzida entre 1490-1519, foi vendida pela Christie´s em NY, por U$ 450.000.000,00, em 2017, o maior valor já pago por uma Obra de Arte.
O "recorde" anterior havia sido atingido por uma obra de Pablo Picasso, "As Mulheres de Argel, versão 0", de 1954-55, vendida pela mesma Christie´s por US$ 179.00.000,00 em 2015.
A obra de Picasso é uma releitura Cubista de uma obra original, de mesmo nome, produzida por Eugène Delacroix, em 1834, que entre 1847-49 pintou mais duas versões desse tema, todas em museus oficiais na França.
É comum que essas obras, por terem sido produzidas no passado e seus autores não existirem mais também sejam muito valoradas. Normalmente obras desse tipo se encontram em instituições como museus ou em coleções particulares que podem ou não vendê-las. Nesse caso são vendidas em algumas situações: para fazer frente às despesas institucionais; para aquisição de novas obras ou para realizar lucros quando se trata de coleções particulares. Quando essas obras saem da esfera pública e entram na esfera privada vão constituir coleções particulares, às vezes são apenas embaladas e armazenadas, praticamente, nunca mais são vistas e só entram de novo no mercado para realizar investimentos, transformar passivos em ativos financeiros auferindo lucros substanciais.
No caso da obra de Da Vinci, acima indicada, estava na posse de um colecionador russo e passou para a posse de um colecionador árabe e, segundo dizem, faz parte da decoração de seu iate particular... Especulação??? Demonstração de poder??? Ignorância??? Quem sabe o que passa nessas cabeças...
Contudo, não é o valor cultural ou histórico que, em boa parte das vezes, determina os altos valores pagos a certas obras. São, em geral, aquelas que caem nas graças do mercado que vislumbra a possibilidade de especulação e ampliação de capital seja para aquecer valores de origens pouco louváveis ou simplesmente para realizar investimentos.
O que movimenta esse mercado, constituído pelas galerias, casas de leilões e especuladores, chamado de mercado secundário são essas instituições comerciais e financeiras que investem pesado na promoção de eventos e mediatização de Obras de Arte para transformá-las em âncoras de investimento onde se aportam valores altíssimos para que sejam realizados mais tarde. Tais obras se parecem então como títulos ao portador... Em geral tais obras não pertencem mais aos artistas ou herdeiros, assim são passíveis de especulação financeira sem restrições, sem falar no mercado negro que opera no submundo.
O mercado primário é o que lida com a aquisição direta do artista para o sistema de galerias, colecionadores e instituições de arte. A maior parte das obras produzidas pelos artistas é destinada ao mercado primário, sejam comercializadas por eles próprios ou por marchands, galerias ou seus representantes que auferem comissões ou participação nas vendas. É comum que o artista receba o menor valor dentro desse sistema e o mercado secundário o que mais lucre com tais obras.
Sim! Isso é perverso...
Além de perverso, é justamente o mercado secundário que manipula, define, inflaciona e supervaloriza tais obras fazendo estardalhaço na mídia e o público que, coitado, nem sabe o que está acontecendo. A maioria imagina que os artistas são riquíssimos, logo, ser artista é uma opção milionária. Contudo é bom ponderar: nem todos são Hirsts, Cattelans ou Koons, assim como nem todos são Cristianos Ronaldos, Messes, Nadais ou Federeres, mas a ilusão continua...
Falando nisso, há artistas contemporâneos que atingem também cifras elevadas por suas obras, em geral, aqueles que já foram consagrados pelo mercado secundário. Mesmo assim, alguns deles conseguem bons valores por suas obras no mercado primário, um fenômeno contemporâneo.
Pode-se dizer que este fenômeno teve início nas décadas de 1960-70 do século passado com manifestações da chamada Pop Art. Esta tendência foi, a meu ver, o pontapé inicial para o processo de super-valorização de artistas vivos... antes, era praticamente impossível isso acontecer.
Um dos fatores que facilitou esse fenômeno foi o diálogo da Arte com o Consumo, especialmente inaugurado no pós-Segunda Guerra em que o afã pela produção e consumo se expandiu, especialmente, nos Estados Unidos. Outro fator foi a visibilidade e difusão das propostas Pop através da mídia e da comunicaçao de massa. Assim artistas que adotaram um diálogo direto com a indústria e a mídia se tornaram celebridades e, por consequência, passaram a ser tomados como mitos vivos...
Um bom exemplo desse tipo de conduta é Andy Wharol que sintetizou muito bem esse processo: ele se apropriava de valores já difundidos e conhecidos mediante a difusão da mídia e lhes dava um tratamento visual ou os inseria no sistema de arte transformando-os em "objetos de desejo" da recém classe dominante e funcionou...
Não é por acaso que algumas de suas obras mais conhecidas tomem como referências imagens da mídia e do mercado:
Coca Cola, 1962, MoMA, NY. |
Soup Campbells Can - Beef, 1965. |
Marilyn Monroe, 1967, MoMA, NY. |
Eight Elvises, 1963. Teve o maior valor de suas obras, vendido por US$ 143,3 milhões de dólares em 2008. |
Seu estúdio em NY, batizado "simbolicamente" de "The Factory", dialogava com o desenvolvimento industrial e comunicacional de massa que se expandía naquela época. Mudava o conceito de ateliê para oficina. Deixa de ser aquele artista lírico que detinha domínios cognitivos e habilidades motoras para idealizar e realizar suas obras, se torna o gestor de uma empresa liderando equipes de assistentes e prestadores de serviço para a produção e realização de objetos em larga escala, como múltiplos, que seriam colocados diretamente no mercado, podendo até dispensar o mercado secundário.
Esse exemplo foi seguido por artistas contemporâneos como Jeff Koons e Damien Hirst entre outros que estabeleceram grandes oficinas, empregam vários assistentes e desenvolvem várias linhas de pesquisa em arte produzindo obras de grande porte e alta tecnologia comparando-se às indústrias High Tech da atualidade. Mobilizam e detém sobre eles os holofotes da mídia e do mercado secundário ávido por colocar suas obras nas coleções particulares e museus de todo mundo. Um fenômeno que atinge poucos...
O melhor exemplo deste tipo de comportamento foi a realização da última exposição de Damien Hirst, em 2017, batizada de "Treasures from the Wreck of the Unbelievable" realizada em Veneza ocupando dois ambientes expositivos. Mostra 189 peças pertencentes a Cif Amotan II, escravo liberto que viveu entre os séculos I e II, na Turquia e acumulou uma fortuna imensurável em obras de arte. O navio que as transportava naufragou na costa da África. Somente nos últimos anos, uma expedição marinha, financiada por Hirst, pode resgatar todas as obras.
Linda história, pena que não é real...
Hirst idealiza e realiza esta fantástica saga, produz as obras e as mergulha no fundo do mar. O resgate é feito por uma equipe de pesquisadores e arqueólogos oceanográficos amplamente documentada por fotos e filmes submarinos de alta qualidade e convencimento. O filme "documentário" do resgate está disponível e pode ser visto no Netflix. Hirst dialoga com o conceito de verdade e mentira, mito e realidade. Algo que faz bem e que orienta boa parte de sua produção artística.
Figuras conhecidas do mundo Pop como Kate Moss, Rihanna, Pharrell Willians, Mickey, Pateta, Barby e o próprio Hirst se tornam personagens escultóricos nessa história. Estima-se que o investimento para toda a produção das obras, do filme e da saga completa, inclusive os dois espaços expositivos: o Palazio Grazzi e o Punta della Dogana em Veneza, esteve na casa dos 200 milhões de reais, o que não importou muito pois as vendas alcançaram mais de 500 milhões de reais... sem intermediários, pois ele dispensou seus representantes habituais...
Kate Moss, Rihanna, Pharrel Willians e o próprio Damien Hirst acompanhado de Mickey são parte das esculturas "resgatadas" pela expedição e mostradas na exposição.
Mesmo artistas "Marginais" como Banksy, que usa o grafite como intevenção urbana, é envolvido nesse processo de supervalorização. Banksy ficou famoso por realizar suas intervenções urbanas críticas e de modo anônimo, ninguém sabia que era ele. Tornou-se, praticamente um mito urbano. Isso fez com que colecionadores pagassem somas elevadas para cortar paredes, retirar tapumes onde o artista havia realizado suas intervenções e, consequentemente, mercantilizá-las. Uma das últimas ações foi a "destruição" de uma de suas obras "ao vivo" num leilão da Sotheby´s londrina.
Uma peça de um de seus grafites "Menina com Balão" foi emoldurada e colocada em oferta por um colecionador anônimo. Durante o leilão a obra atingiu o lance final de aproximadamente cinco milhões de reais. No momento em que o leiloeiro bate o martelo, a tela começa a deslizar para fora da moldura sendo cortada em tiras, destruindo-a parcialmente. Ao que parece, a ideia original era que a obra fosse totalmente fragmentada, no entanto, por qualquer motivo a fragmentação foi interrompida e parte ficou inteira dentro da moldura e parte ficou fragmentada e para fora dela.
Duas imagens da obra de Banksy: quando inteira e depois semi-destruída. O título: "Menina com Balão" foi mudado para "O Amor está no Lixo"...
O mais espantoso é que a pessoa que havia dado o lance arrematador, o manteve e honrou sua compra, mesmo a casa leiloeira estando disposta a anular a venda pelo simples fato da obra ter quase se auto destruído. Mas isso, conforme o adquirente, atribui mais valor à obra e não o contrário... coisas do mercado especulativo...
Não me espantaria também se, mesmo que a fragmentação chegasse ao fim, o comprador honrasse sua compra mantendo, quem sabe, sobre sua lareira a moldura vazia e no espaldar os fragmentos da tela... Algo típico desse mercado especulativo e exibicionista que usa a Arte para distinção social.
No contexto social há dois olhares contraditórios sobre os artistas: se ele consegue atuar com eficiência no mercado, diz-se que é um oportunista, um mercenário e o outro contrário, espera-se que ele seja desprendido, altruísta, despretensioso, pois a arte não tem preço... Ledo engano, se o artista pode ser altruísta, o mercado não é nem nunca será! Ele sempre dirá quanto vale o que ele quer que valha.
Contemporaneamente a produção artística atingiu níveis muito elevados, talvez, resguardadas as devidas proporções, se produza tanto quanto se produziu no Renascimento. Contudo o excesso de produção não significa uma reversão equitativa para aqueles que a produzem, a não ser para alguns poucos privilegiados pela sorte, habilidade ou marketing, coisas do capitalismo...
Todos têm o direito de viver de seu trabalho, seja em que campo for, mesmo o de Arte... Lamentavelmente no contexto da cultura têm-se a ideia de que se vive de vocação, de hobby, do simples prazer de fazer o que se gosta e não o que se precisa para se manter como indivíduo e ter o respeito que todos os seres humanos merecem. A inversão de valores que o liberalismo econômico e predatório instaura afeta todos os segmentos e também refreia, se apropria e manipula o contexto artístico e cultural. Um mundo consumista não pode ter identidade...
Enfim o que, quanto e por que uma dada obra vale o que vale nesse contexto, nem sempre terá explicações claras, consistentes ou verificáveis. Se busca o tempo todo justificativas para explicar ou simplesmente entender os fenômenos sociais, de mercado ou culturais, mas uma coisa é certa: a Arte não morreu... continua viva e, mesmo reprimida pelo jugo do mercado, permanece ativa...
Fazer Arte ainda é uma atividade essencialmente humana, independente dos fins dados a ela, continua ampliando o diálogo com a existência.
Agradeço a leitura e peço o compartilhamento, obrigado.
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