A Arte de hoje em dia opera, em boa parte, por meio de Proposições: os artistas buscam referências, problematizações, conceitos e ideias para realizar coisas que podem ser ou conter objetos, coisas e também se configurar como eventos, instalações, intervenções e manifestações que criam meios, sistemas e processos destinados a abrir diálogos com o público e gerar reflexões, análises e críticas em torno e/ou por meio da Arte.
Pensar processos artísticos é manter-se alerta para tudo o que envolve a presença humana no meio social ou natural. O artista é um eterno pesquisador, investigador, descobridor, sempre alerta para os detalhes, as mudanças, variações e variáveis que inundam o contexto vivencial em todos os sentidos.
Dia desses um dos meus colegas de trabalho me presenteou com uma peça de couro, cujo formato me sugeriu a forma de um Mapa. A partir daí passei a refletir sobre a ideia de cartografia e a problematizar o conceito de Cartograma. Em consequência disso e sem querer acabei tocando também no conceito insólito do terraplanismo...
É possível que mapas existam desde os tempos pré-históricos, a questão é que não sobreviveram ao tempo.
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“Cartografia no período pré-histórico no mundo antigo”, de Catherine Delano Smith, em Brian Harley e The History of Cartography, Volume One, de David Woodward (Chicago, 1987, pp. 54-101). |
Mais tarde, na Babilônia, é encontrado também um mapa impresso numa peça de argila onde se encontram também sua descrição pela escrita cuneiforme.
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O primeiro Mapa mundi conhecido parece ser este da Babilônia criado no século VI a.C. |
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Aqui a interpretação do mapa babilônico, o Mundo conforme lhes parecia ou como o conheciam até então. |
Sabe-se que a Cartografia é um procedimento representacional eficiente em busca de mostrar com eficiência a posição dos espaços geográficos no globo Recorre à representação dos acidentes geográficos, fronteiras, morfologia e demais dados que contribuem para o reconhecimento geolocal... Contudo, em contraponto a isso, existem também os Cartogramas que, embora remetam à criação de imagens de base
cartográfica, não são construídos como um mapa tradicional, portanto, não seguem as convenções nem a construção cartográfica habitual destinada a indicar lugares, características geológicas ou condições globais como os mapas típicos dos estudos geográficos.
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Detalhe do "Mapa" de Isidoro de Sevilha, 1040, que mostra um círculo com um T inscrito representando três continentes: a Ásia, a Europa e a África. |
Nesse caso, menos do que um mapa, mais parece um cartograma.
Os cartogramas querem mostrar variações e variáveis que
podem se referir a outros aspectos que não apenas geográficos mas se apropriam da figuração geográfica para informar dados de outras origens como sociais, humanos, econômicos, ambientais, etc. Atuam por meio de uma espécie de “licença poética” na qual não importa apenas onde estamos no
espaço mas quem ou como somos no mundo...
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Mapa de 1050, produzido pelo Beato de Liébana, religioso espanhol, orientado a Leste e não ao Norte como é comum. Outro aspecto é que o mapa não se refere a locais geográficos mas ao percurso dos profetas cristãos pelo mundo. |
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Mapa dos Saltérios (Londoner Psalterkarte): Um mapa do mundo, com Jerusalém no centro e as raças monstruosas na extremidade, entre 1200 e 1250 dC. |
Essas condições "criativas" abrem o horizonte para a expressão artística
já que um cartograma não é um mapa referenciado ao que se vê, mas também ao que "prevê", ao que se quer mostrar mesmo que, em parte, seja fruto da criação ou, talvez, da
imaginação. Cartogramas alteram a imagem tradicional dos limites, das fronteiras,
das cores, das convenções para significar coisas que um mapa convencional não
seria capaz de mostrar, aí entra a capacidade criativa do “mapeador” ou do
artista.
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Tábula Rogeriana, mapa criado por Muhammad al-Idrisi a mando do rei Normando Roger II descrevendo Europa, Ásia e norte da África, colocando o Sul no topo e não abaixo como costume atual. |
Pode-se pensar que os primeiros cartógrafos apelavam para
esta possibilidade "cartogramática" e criativa na medida em que os dados que coletavam ou possuíam não eram
suficientes para dar conta das informações que precisavam compartilhar com seus
semelhantes, daí recorriam à imaginação, às crenças e imposições do poder ou crenças religiosas para realizar seus mapas e, de um modo ou de outro, configurar e consolidar tais crenças e valores. Dada às dificuldades de observação e representação de imagens geográficas, havia o consenso generalizado de que a terra era plana, já que as representações criadas assim o diziam. Esse conceito era bastante reforçado pelo poder na medida em que dominar a informação era também um modo de intensificar o poder por meio da contenção dos dados e informações que possuia e, em geral, negava aos outros: saber era poder.
Exemplo disso é o Geocentrismo, dogma imposto pela religião que definia a Terra como o centro do universo mesmo sabendo, desde a antiguidade, que o sistema Heliocêntrico era dominante, ou seja, controlar crenças, valores e "verdades" é um dos modos de reprimir e impedir o desenvolvimento de novas ideias, conceitos e avanços humanos.
O mais intrigante é que, ainda hoje existem pessoas que, à despeito de todas as conquistas tecnológicas, geográficas, espaciais para verificação, leitura, registro e observação das configurações terrenas, ainda acreditam que o globo terrestre é plano. É como se houvesse um retrocesso à antiguidade, período em que muito do que se sabia cabia apenas no limite do deslocamento físico do ser humano. Os Terraplanistas são sofomaníacos, retrógrados de carteirinha que comungam uma espécie de seita se satisfazendo em acreditar ou aceitar dogmas que não têm qualquer justificativa ou evidência geográfica, geomórfica ou astronômica que os amparem e defendam, se baseiam apenas em crenças, convicções e valores ultrapassados e absurdos, mas se são felizes assim... Quem somos nós para tirar-lhes a felicidade de acreditar em bruxas, papai noel, bicho papão e assemelhados... Aos ignorantes o prêmio de sua própria ignorância.
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O "Theatrum Orbis Terrarum" (Teatro do Globo Terrestre), de Abraão Ortélio foi publicado em 1570 na Antuérpia, é o que mais se aproxima da situação do mundo no período moderno na medida em que inclui as descobertas das explorações marítimas promovidas pelas casas européias colonizadoras. |
Contudo, representar coisas do mundo natural em superfícies planas é
recorrente desde as primeiras imagens criadas na superfície das cavernas pelo
ser humano. O artifício de transpor algo do meio tridimensional para um suporte
bidimensional já era utilizado desde os primeiros momentos da humanidade. Basta
refletir a respeito das limitações para produzir e dispor “maquetes” ou “modelos”
das coisas que viam ou que queriam representar naquelas cavernas. Embora fosse capaz
de modelar, esculpir e construir coisas não foram essas as opções preferenciais
escolhidas para suas manifestações.
A imagem bidimensional condensada, intuída
e conformada à superfície bidimensional foi a estratégia eleita ao longo do
tempo, basta observarmos que pinturas, desenhos, incisões que predominaram em todo
o percurso das imagens desde então.
Representar uma figura é diferente de representar o espaço.
Uma figura pode ser uma síntese, uma redução, um simples esquema de algo, mas a
espacialidade implica em definir uma posição no espaço a partir da qual se
delimitam distâncias, proporções, dimensões e outros referenciais difíceis de
construir sinteticamente, basta lembrar que a perspectiva, como meio de representação
espacial, só atinge sua plenitude no Renascimento, por volta do século XV.
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Representação tridimensional do Mapa/Globo Terrestre, gravado em um ovo de avestruz, Florença, Itália, 1504. |
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A mais completa e complexa projeção esférica do globo de 1700. |
“Ler” mapas é ler convenções. Se não houver referências que
sejam capazes de serem reconhecidas por mais pessoas a leitura não flui, logo, se
o objetivo de informar não é atingido um mapa é simplesmente uma imagem hermética
ou abstrata...
Outra questão perpassada pela cartografia é o reconhecimento da polaridade entre Ocidente e Oriente. Embora geograficamente a divisão entre estas duas "identidades" seja perceptível num mapa, nem sempre a compreensão à esse respeito é tão clara assim.
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Divisão geográfica entre ocidente e oriente. |
Contudo, essa divisão não considera uma questão de suma importância na compreensão que se tem de Ocidente e Oriente. Culturalmente essa divisão é arbitrária e foi fundada na crença de uma civilização mais hegemônica, especialmente originária da Grécia, Roma com aportes do judaísmo e do cristianismo, logo, é uma concepção de caráter conceitual e não geográfica.
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Nesse caso, a linha divisória, faz uma curva para acomodar o conceito de Oriente desde o pensamento Medieval, Moderno até o Contemporâneo. |
Logo, os mapas, nem sempre acomodam apenas a geografia, mas tabém a cultura e as aquisições conceituais, informativas e as dominações que ocorreram ao longo da história para explicar origens, condutas, condições e características.
Nesse mesmo sentido, os Cartogramas distorcem formas para reforçar, intensificar dados e informações, portanto não são representações realistas ou geométricas ou geograficamente precisas mas criações elaboradas para dar sentido ao que se pretende dizer:
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Nessa imagem os países são escalados de acordo com sua população, resultando em densidade populacional quase constante, logo há distorções em relação aos formatos originais geogrãficos. |
Nesse sentido, a criação de Cartogramas se aproxima mais da Arte
do que da Geografia. Um geógrafo pode alterar,
mudar, inventar imagens para facilitar a compreensão das coisas, mesmo que os dados sejam corretos as imagens são mais "legais", interessantes e plasticamente mais estimulantes. É o mesmo que faz o artista cuja liberdade poética que lhe dá autonomia plena para imaginar, criar e expandir esses limites, nesse caso,
a criação dialoga com a informação e, quem vence, acredito que seja a criação,
muito mais rica, estimulante e divertida...
Criem seus mapas imaginários, sejam os gestores de seus pensamentos e ilusões, divirtam-se que a vida é muito curta para ser desperdiçada com dogmas e crenças absolutas...
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