REFLEXÕES - Arte para que?

Esta foi a pergunta que a historiadora e crítica Aracy Amaral lançou em 1987 em seu livro "Arte para que?. A Preocupação social na Arte Brasileira 1930 - 1970". Em seu trabalho discute as questões da implantação e consolidação do Modernismo na Arte no Brasil e suas relações com o contexto social.
Independente do recorte que a autora fez para colocar as questões da Arte num dado lugar e num certo período de tempo sabe-se que a Arte sempre esteve presente no contexto humano: fez parte de pequenos grupamentos, núcleo sociais ou grandes civilizações e, até hoje (queiram ou não), age e interage com a sociedade.

Volto a essa pergunta tomando-a sob um outro viés: o do Ensino. Como sabem atuo como docente de carreira na Área de Arte Visual desde a década de 70 do século passado. De 1976 até hoje estive vinculado ao ensino superior em instituições públicas. Foi a carreira que escolhi e a percorro com dedicação e respeito.
Passados estes anos todos, continuo me fazendo essa mesma pergunta, mas sob a ótica do ensino há, pelo menos, dois lados a considerar: o do professor e o do estudante.

O lado do professor, a meu ver, é o lugar dedicado à formação de indivíduos que possam adquirir e replicar os conhecimentos desse campo no contexto social. Nosso material de trabalbo é o Conhecimento sobre e em Arte Visual. Esse Conhecimento foi e está sendo construído ao longo dos séculos pela humanidade e persiste como um campo imprescindível do desenvolvimento social e cultural de todos os povos, independente de nações, ideologias, credos e etnias.

A construção desse conhecimento mobilizou desde os seres pré-históricos passando pela antiguidade, idade média, moderna e contemporânea mobilizando o pensamento de filósofos, historiadores e produtores. Independente do estágio cultural em que uma comunidade ou nação estivesse, a Arte estava presente e dialogava com essas pessoas e com seu tempo, por isso ela é tão diversa. O que encanta o lado do professor é justamente esse universo de criação, tendências, aparências, formas e proposições que desafiam a cada momento uma nova leitura, uma nova abordagem e estimula a pesquisa e a ampliação desse conhecimento.

Assim os constructos que mobilizam o fazer da Arte também influenciaram o seu ensino já que os conteúdos selecionados para os projetos pedagógicos dos cursos são decorrentes e obtidos da produção realizada pela humanidade. Pode-se dizer que, originariamente, as manifestações artísticas tinham um componente espontâneo e simbólico, natural e livre mas, aos poucos, adotou posturas mais dirigidas ou mesmo ordenadas em função do momento social ou da civilização na qual existia. Ora mimética, imitativa, figural, ora abstrata, informal, inexplicável ou desafiadora se manteve como um traço cultural importante.

Isto posto é fácil entender por que tantas pessoas se interessam e se dedicam ao campo da Arte e seu Ensino. Contudo, por outro lado, as razões dos estudantes talvez sejam menos perceptíveis, mesmo para eles, nesse sentido é que me dispus a escrever sobre isso.

A primeira questão que me vem à mente é: Por que alguém escolhe um curso de Arte Visual?
Imagino o susto que uma família convencional tenha ao ser comunicada por um adolescente que irá fazer um curso de Arte. É fácil entender esse susto pois a sociedade previlegia o interesse por cursos mais previsíveis e que tenham maior chance de inserção no mercado, em oposição àqueles que são acometidos pelo que chamo de "Síndrome da Indigência" como os que se encontram nas áreas menos previlegiadas pelo mercado como as chamadas humanidades e cultura consideradas menos ou completamente "desnecessárias" à sociedade.

Me parece que a motivação recorrente para a escolha de um curso na área de Arte Visual é de alguém que tem certas habilidades para a criação artística. Pessoas que desenvolvem, em geral e por conta própria, habilidades para a construção de imagens e isso as leva a fazerem esta opção (este foi o meu caso). É possível admitir que se encontram nessa mesma situação as pessoas que no ensino fundamental e médio sentiram interesse pela área a partir de disciplinas ou de professores que conseguiram, apesar de tudo, estimulá-los a buscar essa área de conhecimento para sua formação.

Na área da visualidade como da Arte Visual, se encontram áreas mais pragmáticas, antes chamadas de "Artes Aplicadas", como a de arquitetura e design com suas vertentes em produto, gráfico, moda e web; assim como atualmente a de audiovisual, elas também sofrem da mesma dificuldade de estímulo e escolha. Embora pareçam mais promissoras com relação à expectativa de absorção pelo mercado, também são vítimas dessa "Síndrome da Indigência".

Sabe-se que os cursos nessas áreas são exigentes quanto a investimentos intelectuais e materiais que, nem sempre, retornam com facilidade. Duram de três a cinco anos, sem contar com pós-graduação seja especialização, mestrado ou doutorado que acrescentam de uma a quatro anos, caso a opção seja pela carreira acadêmica ou por maior qualificação profissional. Depois a busca pelo mercado que implica em disputa de currículos, portfólios e concursos.

Pode-se ponderar que esta trajetória não é diferente de outras áreas de formação superior e que todos aqueles que se formam estão sujeitos a estes mesmos processos e percursos, no entanto, os cursos que se alinham ao liberalismo de mercado são entendidos como úteis e necessário ao desenvolvimento, crescimento e enriquecimento econômico das nações, ao contrário daqueles que se aprofundam no conhecimento e na construção de uma identidade cultural e social são considerados como irrelevantes. Justamente por isso, não há consciência social sobre a importância da Arte Visual, tampouco o reconhecimento de que é uma área de Conhecimento e, como tal, deve ser respeitada. Além disso há uma espécie de consenso de que qualquer um é capaz de se tornar artista e de exercer qualquer atividade nessa área por mero capricho.

A visão de que é uma área "autodidata", ou seja, basta praticar alguma técnica artística que dá certo, é comum vermos ex-jogadores, ex-empresários, ex-médicos, ex-socialites, ex-tudo, num dado momento de seu trajeto adotarem algum recurso como a pintura, o desenho, a fotografia como meio de entretenimento e se auto-entitularem artistas e pior, usarem seu acervo de relacionamentos e capacidade financeira para alavancarem mostras e eventos de fazer inveja às melhores galerias do ramo. Esse comportamento é reforçado pela ideia corrente de que a Arte Visual é destinada, em sua maioria, à decoração ambiental, o Belo conceitual é convertido em beleza barata e se alguém é capaz de fazer algo agradável, com um mínimo de técnica e que combine com o lugar, pode ser considerado artista. Muitas galerias comerciais se dedicam exclusivamente a obras decorativas, assim, a ideia corrente é que Arte Visual é decoração persiste e insiste.

As questões aqui apontadas estão postas na sociedade tanto as positivas quanto as negativas. Quero deixar claro que não condeno quaisquer manifestações de caráter artístico ou pretenso-artístico que exista ou surja na sociedade, defendo que a área de formação em Arte é tão relevante e importante como todas as outras que fundam a sociedade e o ambiente cultural em que se vive. A visão elitista de que há manifestações artísticas melhores ou mais inportantes que outras é mera estratégia de apagamento de sua função social antropológica. O modo de fazer Arte que surge a partir do Renascimento foi consolidado pela burguesia dominante até o século XIX e se tornou um projeto hegemônico contra o qual era difícil se opor. O advento do Modernismo desafia esse projeto e investe na experimentação, inventividade e nas proposições estéticas conceituais que, até hoje, são confrontados pelo status quo.

Um dos modos mais eficientes de forçar esse apagamento é o da desqualificação: o que não é agradavel, bonito, conformado ao gosto mediano e bem-comportado é simplesmente rechaçado ou ignorado. Outra estratégia é a de tratar tais manifestações como curiosidade, exagero, loucura, ou excentricidade de pessoas que, por não entenderem os valores convencionais, agem por impulso ou como contestadores inconformados e, por isso, são admitidos como anômalos, atípicos e sui generis sem, no entanto, serem aceitos de fato. Essa mesma estratégia se vale dessa suposta anomalia e super valoriza tais trabalhos e atitudes revestindo-as de proposições ultra modernas e lhes atribuem valores astronômicos convertendo-as em produtos de investimeto e especulação. Isso cria mais confusão ainda junto as pessoas comuns que não detêm conhecimento para melhor compreensão e discussão sobre e em Arte no contexto atual, assim não é muito fácil entender a vigência dessas manifestações, o que é ou não coerente ou condizente com a contemporaneidade.

Bem, aqui voltamos à questão do Ensino e à responsabilidade social da formação em Arte Visual.
Primeiramente é necessário destacar que a formação em Arte no país está vinculada, quase que exclusivamente, ao ambiente formal e regular de ensino. Do ensino fundamental e médio ao superior a responsabilidade pela formação em Arte é confiada a esses três estágios segundo as diretrizes nacionais de educação.

Nada impede a existência de meios alternativos de formação como estúdios, ateliês e instituições que queiram se dedicar a ela na inciativa privada, no entanto, dado às condições pouco favoráveis que revestem essa área, é difícil que o capital privado queira investir nela. Assim, a formação depende praticamente e só do sistema público de ensino.

É fato conhecido e vivenciado que o ensino fundamental e médio, embora tenham a reponsabilidade de iniciar a educação em arte e para a arte, pouco consegue fazer nesse sentido pela precariedade em que subsiste estenível de formação no país. Embora exista legislação para isso, nem sempre é respeitada justamente pela precarização imposta a esses níveis de ensino. Se você duvida disso, basta recorrer à sua memória e lembrar como foi sua experiência de aprendizado no contexto da Arte desde seus primeiros anos de escolarização...

Resta então falar à respeito do ensino superior. Nesse contexto de indigência cultural, social e econômica é possível dizer que o ensino superior, apesar dos pesares, ainda se revela como um lugar privilegiado. Obviamente, como já dito, as áreas de formação com maior expectativa de retorno para o mercado econômico e de serviços tem mais respeito e investimentos do que as demais. Mesmo assim é na Universidade que a Arte é respeitada como uma área de Conhecimento e, como tal, é a responsável pela desenvolvimento das pesquisas, investigações, ensino e sua mediação com a sociedade, especialmente no sistema público. É patente a quantidade de cursos superiores dedicada ao campo da Arte nas instituições públicas em relação à pequena quantidade nas instituições privadas.

As instituições públicas são responsáveis pela maioria dos cursos de formação graduada e pós-graduada nesta área e, como consequência, a maior produção científica e intelectual depende delas. Essa constatação leva também a um problema: como essa produção é acadêmica, atende e se destina, em sua maior parte, à própria academia, ou seja, boa parte dela fica confinada a este ambiente com pouca circulação no ambiente social. Esse é um dos fatores que leva à crítica corrente de que a Universidade se fecha sobre ela mesma. Embora esse raciocínio seja falacioso, mostra a propensão que o liberalismo econômico tem de valorizar as áreas "funcionais" em detrimento de áreas "intelectuais".

Independente disso é nesse meio que a formação graduada em Arte é realizada. No campo da Arte Visual, de acordo com as diretrizes educadionais da área, há duas linhas de formação: a Licenciatura e o Bacharelado. A Licenciatura se dedica à formação de profissionais dedicados ao Ensino, nesse caso, os professores de arte visual serão formados dentro de estruturas curriculares que visam sua preparação como docentes que atuarão, segundo a legislação em vigor, no ensino Fundamental e Médio, ou seja, desde a educação infantil até o colégio. O ensino superior, por mais incoerente que pareça, não requer licenciados, apenas graduados, obviamente pós-graduados. Os Bacharelados se dedicam à formação específica da área sem abordar as questões didático-pedagógicas requeridas pela Licenciatura, portanto, os bacharéis não poderão atual no ensino fundamental e médio por não serem licenciados para tanto, contudo poderão atuar no ensino superior desde que, como já dito, sejam pós-graduados. Nesse caso a formação se aprofunda no desenvolvimento dos aspectos conceituais e expressivos típicos da Arte Visual.

Resta então clarear quais são os campos de atuação dos Bacharéis.
Primeiramente cabe dizer que não há qualquer exigência de caráter legal, reserva de domínio profissional que garanta ou preveja a prioridade de um bacharel na atuação social como há, por exemplo, na área de saúde em que os profissionais devem ser formados e inscritos em conselhos regionais para poderem ter o direito de exercerem suas profissões. Isso acontece também em várias áreas: direito, engenharias, arquitetura, educação física, geologia etc., etc. Em Arte não. Há uma distorção congênita: embora a classificação de atividades do Ministério do Trabalho identifique áreas de atuação no campo da Arte Visual, isso não corresponde ao que se vê na sociedade, logo, os bacharéis competem entre si e também com as demais pessoas que se auto-denominam artistas ou gestores e atuam em ambientes que seriam, por princípio, deles. Não havendo consciência de classe não há respeito por ela. Isto leva muitos egressos dos cursos de Arte Visual a desenvolverem carreiras paralelas, ou seja, trabalham em áreas diferentes das de Arte com o fim de subsidiar sua produção artística.

Enfim, o que um Bacharel em Arte Visual pode fazer?
Pode ser um artista, essa é a mais óbvia constatação já que a preparação nessa área inclui conhecimetos de base cognitiva sobre Arte em geral, suas teorias, conceitos e estética como também as práxis em suas poéticas, é de se esperar que ele possa atuar como criador.
Pode seguir a carreira acadêmica como professor em instituições de ensino desde que se qualifique em nível de pós-graduação, na carreira de ensino superior o mínimo exigido pela legislação é o Mestrado no entanto, atualmente os concursos públicos exigem, no mínimo, o Doutorado para os candidatos, mesmo para início de carreira.
Pode ser um Gestor em Arte. O campo da Curadoria, por exemplo, ou seja, o que se ocupa em organizar, produzir e administrar mostras, eventos, as publicações no campo da Arte dependem de especialistas e conhecedores capazes de atuar em diálogo com a sociedade, seja em relação ao conhecimento ou ao mercado. Assim um campo de atuação por excelência em instituições públicas ou privadas é este.
Pode ser um pesquisador e atuar em instituições públicas ou privadas como institutos de Arte e Cultura como museus, por exemplo, no registro, produção documental, conservadoria e publicações sobre e em Arte.
Pode ser um profissional em convervação de patrimônio cultural atuando em museus e instituições destinadas a prevervação e conservação de ambientes e obras de Arte.
Pode atuar em instituições públicas ou privadas como galerias, museus, institutos na assessoria, acompanhamento ou produção de eventos em arte e cultura.
Pode atuar como conselheiro, consultor ou assessor para colecionadores e investidores em Arte.
Pode atuar em empresas de produção visual como consultor, assessor ou produtor visual para edições literárias, informativas, digitais ou publicitárias em diretorias artísticas e de produção.
Pode ser produtor de conteúdo para ensino, conhecimento sobre arte em suportes físicos ou ambientes virtuais.

A Arte serve sim, para muitas coisas, inclusive para nos manter mais sensíveis, respeitosos e mais humanos...

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