POÉTICAS – Série: Fósseis

Falar de Arte, para mim, é um prazer. Não considero que, por ser um profissional da área como professor ou produtor, seja um trabalho exaustivo ou aborrecido, ao contrário, é uma fonte de estímulo, ânimo e renovação. O simples fato de dedicar um bom tempo para elaborar os textos reflexivos que publico com frequência neste Blog, além de minhas atividades docentes habituais, mesmo sabendo que muitos nem serão lidos, já é uma prova disso. 

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Dito isso, volta e meia, meia volta, recorro a temas que, num momento ou noutro, estiveram presentes no contexto de minhas reflexões ou produções no intuito de relê-los. Assim os revejo, repenso e reescrevo, pois nada é definitivo, tampouco as teorias, compreensões, opiniões ou pontos de vista que se tem num dado momento, em outro, podem mudar.

Nesse texto recorro a uma série que realizei há alguns anos batizada de Fósseis. Não aqueles que ficaram soterrados e nos trazem informações sobre os milhões de anos da existência da vida na terra, mas uma das abordagens Poéticas que realizei tomando a ideia de Fóssil como tema. Fossillis, do latim, significa "desenterrado", "extraído da terra". Restos de seres vivos são chamados de somatofósseis e seus vestígios de iconofósseis. De modo geral pode-se considerar que os vestígios que sobreviveram aos milhões de anos, definindo as diferentes eras geológicas, são registros de nossa existência na terra...


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Dapedium a mollusc-eating ray-finned fish that lived in Dorset during the early Jurassic.

Sempre me atraiu a existência dos fósseis, a possibilidade de olhar para algo que existiu há milhões de anos e, ainda hoje, é possível inferir algo à respeito de como foram. São como cortes no tempo por meio dos quais pode-se acessar o passado. 

Foi justamente a possibilidade de fazer uma espécie de corte transversal no tempo que me levou  a escolher esse tema, a tentativa de criar um diálogo entre a tríade temporal referente aos três estágios conceituais de tempo que são o passado, o presente e o futuro, simulando a transcendência de uma época para outra. 
É isso, em última instância, que me diz a presença dos Fósseis, uma referência ao passado que evoca novamente uma tríade, a transitoriedade do ciclo da vida: nascimento, desenvolvimento e morte.

Se no passado remotíssimo as condicionantes climáticas, talvez catastróficas, possibilitaram que, hoje em dia, fosse possível uma volta ao passado, justamente por conta de existirem repositórios geológicos que preservaram vestígios e pistas tanto das condições climáticas, geomórficas, vitais daquele tempo, quem sabe o que se poderia fazer ao dialogar com essas condições no contexto da Arte?

Problematizando essa situação recorri a outra tríade, a do ciclo da vida: nascimento, desenvolvimento e morte que tanto afeta o ser humano, suas crenças, medos, esperança e valores. Se natureza e sobrevivência são pontos importantes das especulações humanas porque não brincar com isso?

Até que ponto o ser humano vê tais condicionantes inexoráveis e tenta burla-las ou se livrar delas? Até onde ele iria para permanecer vivo? 
E se isso não for possível, quais estratégias estão disponíveis para desviar-se dessa sina?

Há um provérbio, atribuído ao pensador chinês Confúcio, nascido em 500 a.C., que diz que o ser humano digno deve, em sua vida: ter filhos, plantar arvores e escrever livros, ou seja, prescreve as maneiras mais práticas de preservar seus genes, a natureza e sua memória. Isso serve para as condições sociais ou individuais. Mais outra tríade...
Do lado natural, a memória das coisas e do meio são marcadas pelos vestígios que permanecem ou sobrevivem às variações climáticas ambientais ou ao próprio ser humano. Assim os vestígios, indícios, resíduos e marcas são os registros que possibilitam acessar informações sobre o passado, ambiental ou social. A Arqueologia surgiu para isso.
Os indicadores de presenças orgânicas se tornaram recursos para entender o passado da terra, da cultura e das pessoas que aqui viveram em épocas ou períodos passados.
Grupos humanos, etnias ou civilizações, só puderam ser conhecidas mediante os resíduos que permaneceram além de sua existência. Sem eles, não teríamos nem mesmo o tempo, o passado, as memórias que nos definem como "humanidade" no tempo e no espaço.

A presença material e histórica da humanidade, seus valores internos ou externos, resultam de vestígios e marcas remotas passíveis de serem atualizadas e, assim, reconstruírem a compreensão de quem foram eles, quem somos e quem, talvez, seremos.


Foram estas reflexões que me levaram à proposição da série Fósseis. Me propus a trabalhar na relação inversa do surgimento dos fósseis e levantando a seguinte questão:

A criação de uma suposta Arqueologia Poética, possibilitaria aos espectadores uma reflexão sobre o ser e estar agora? 
Ao potencializar nossa própria sobrevivência por meio de artefatos autorais, teríamos a certeza de que transcenderíamos o tempo de nossas vidas? 
Transcender o tempo é um dos motivadores de muitas ações humanas desde as múmias até a criogenia...

Nesta linha de raciocínio são construídos os monumentos, os marcos históricos, pedras fundamentais de edificações e capsulas do tempo que, de vez em quando, são criadas para, supostamente, levar adiante o legado de uma geração.

Esta série foi idealizada para dialogar com a presença dos aspectos atávicos humanos e de sua memória: aquilo que, embora seja presente, fatalmente será passado mas aponta para o futuro...

Assim, os fósseis não são encontrados ou descobertos arqueologicamente, mas premeditadamente construídos recorrendo a dados, coisas e formas presentes tomados de modo aleatório e transformados em objetos.



  
Supostamente, tais objetos poderiam ser, quem sabe, encontrados por alguém no futuro, contudo, o fato de que são vistos agora, pode ser que já chegamos ao futuro ou, mais intrigante ainda é que descobrimos um meio de trazer do futuro algo para o presente, uma viagem transcendental entre espaço e tempo. 

Nesse sentido evocam algo que passou, mas se projetam para depois e propõem um diálogo do que foi para o que virá. Assim os rastros, registros e presenças são tão insólitos, inadequados e... Surreais, cuja presença, se não for possível no campo da Arte, não será também no campo da física...

A série é constituída de peças modeladas nos quais são impressos, pressionados, objetos que supostamente se tornarão pistas, no futuro, para o re-conhecimento do passado. Passado forjado, simulado mediante a manipulação de caráter estético/conceitual num diálogo que parte das manifestações em si, das interações e interpretações conceituais delas decorrentes.




Assim o caráter poético contempla a experimentação das propriedades matéricas/físicas e plásticas da modelagem, compressão, impressão de superfícies e texturas, transformadas pela queima em terracota. A série não tem limite ou fim, pode ser realizada em outros tempos, recorrer a outros tipos de materiais e massas, como plastilina e resinas desde que que possibilitem a retenção, reprodução de marcas, formas, formatos, vestígios e texturas de coisas que, por impressão, se tornem, não cópias, mas rastros, registros de existência, e sugiram, por meio da Arte uma arqueologia do futuro...


Divirtam-se, curtam e compartilhem, agradeço.

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