Poética Interativa - Fotografia: Tratar ou não? Eis a questão...

Paisagem da Beira-Mar, Florianópolis, SC, Isaac.
Neste texto, penso a Fotografia como uma das poéticas expressivas disponíveis para as manifestações artísticas, logo, o que chamo de "Tratar" aqui se refere à recursos aos quais se recorre para torná-las mais eficientes em termos plástico/visuais.
No contexto da Arte Visual, não há qualquer obrigação, por parte do criador, de preservar a imagem exatamente do modo como foi obtida, ao contrário do contexto da fotografia documental que só pode ser admitida se corresponder aos fatos que a geraram.
A fotografia documental, seja jornalística, antropológica ou etnográfica não admite alterações que mudem o seu sentido e significado, pois não é concebível alterar ou adulterar as informações que ela obteve na origem. O compromisso ético de garantir, manter e preservar os dados originais em relação à tomada da imagem é uma das responsabilidades sociais que o fotógrafo documentarista ou fotojornalista assume diante de sua profissão e da história, portanto, deve se esforçar para obter a melhor imagem no instante do ato fotográfico e não transformá-la depois. Um bom exemplo é Sebastião Salgado, fotógrafo brasileiro dedicado ao documentário.

Resultado de imagem para documentary photography
Sebastião Salgado, campo de Koren, Etiópia, 1984
Tratar uma foto significa interferir em algum estágio de sua configuração: desde a tomada, o processamento ou na edição para melhorar suas qualidades e/ou características com a finalidade de adequá-la ao cumprimento de suas finalidades ou funções seja no contexto criativo, estético/expressivo ou comercial.

Assim considerado o tratamento se incia já no manuseio do aparelho fotográfico, ou seja, da câmera. O simples ajuste de seus componentes óticos e mecânicos, no intuito de adequar as condições luminosas ambientais ao suporte sensível para obter um registro do que se encontra diante já é um tipo de tratamento, já que a imagem não corresponde exatamente ao que se vê no mundo. esse processo costuma acabar na Edição final quando se dá por encerrado o processo de tratamento da imagem, considerando que ela tenha atingido a qualidade de acordo com o nível de exigência de quem a produz.

No senso comum, algumas pessoas creem que a imagem fotográfica nasce pronta, ou seja, basta clicar o botão de uma câmera fotográfica ou de seu celular que a imagem surge como que por encanto... Isto nunca foi verdade, mesmo considerando a automação das câmeras, desde as analógicas até as digitais, nada se faz como um passe de mágica, são os ajustes dos componentes técnicos da câmera que viabilizam o surgimento da imagem e definem o modo como ela aparenta. Atualmente as câmeras digitais possuem programas acoplados que fazem boa parte do serviço de edição ou seja, de tratamento. Tais programas determinam o nível de automação atribuído à câmera dando ao usuário a ilusão de auto-suficiência. 

Olhando para a história da fotografia constatamos que o tratamento das imagens fotográficas sempre ocorreu, independente da épocas em que foram criadas. A principal questão é distinguir a que tipo de manipulação ou tratamento as fotografias são submetidas e com que finalidades. Como apontamos inicialmente: é necessário entender se tais intervenções e manipulações comprometem ou não as funções sociais para as quais elas são produzidas.

Tratar uma imagem não é necessariamente transformá-la a ponto de alterá-la totalmente, o que é plenamente possível levando em conta a tecnologia digital que temos à disposição na atualidade. A meu ver, o que sempre motivou o tratamento de uma imagem não foi a possibilidade de transformá-la em outra coisa e sim a possibilidade de melhora-la, ajusta-la, adequá-la ao seu uso ou finalidade fosse documental, conceitual ou expressiva. No campo da moda o tratamento "cosmético" de uma imagem é necessário para torná-la mais adequada a leitura que se espera dela.

Tonalidade da pele e dobras
Esse tratamento "cosmético" faz com que a imagem seja mais adequada à publicação, à publicidade. (https://designcomcafe.com.br/photoshop-tratamento-de-fotografia-moda/)
Considero que o surgimento da Fotografia foi um desdobramento da necessidade de reprodução de imagens e não como a reprodução ou registro do visível. Se tomarmos como exemplo as primeiras imagens produzidas por Josephe Nicephore-Niepce em 1826, vemos que sua preocupação era justamente reproduzi-las meios químicos, como se vê abaixo:

Nicéphore Niépce, cardeal de Amboise, agosto-outubro de 1826, gravura original envernizada para a realização de uma heliografia de contato © musée Nicéphore Niépce
Nicéphore Niépce, cardeal de Amboise, agosto de 1826 - janeiro de 1827, fotografia em lata gravada com ácido, entre em contato com a heliografia © musée Nicéphore Niépce
Nicéphore Niépce, cardeal de Amboise, agosto-outubro de 1826, gravura original pintada para a realização de uma heliografia de contato © musée Nicéphore Niépce

A imagem da esquerda é uma gravura do Cardeal francês Georges D´Amboise, que Niepce reproduziu por meio do contato da imagem existente com um suporte sensível com incidência da luz solar, dai chamar de heliografia ao seu invento. À direita sua reprodução. O que se percebe é que, desde aquele momento, há necessidade de tratar a imagem para torná-la mais legível. Pois a reprodução obtida não era suficiente para torná-la funcional:
Imagem obtida da gravura

Imagem reproduzida.

Na continuidade de seus experimentos para a reprodução de imagens, em 1827, expõe uma chapa metálica, preparada para gravuras, dentro de uma pequena câmara escura apontando da janela para seu jardim. Tem sucesso na medida em que consegue obter uma imagem diretamente do meio natural por meio da luz sobre um suporte sensível, embora não tenha a "qualidade fotográfica" que, mais tarde, foi alcançada pelos sucessivos melhoramentos proporcionados por muitos inventores, não há dúvida de que inova o processo de obtenção de imagens.

Imagem relacionada
À esquerda a imagem obtida sobre o metal, à direita uma reprodução "tratada" dela.

Assim a fotografia surge e, aos poucos, consolida um projeto técnico que implica em usar aparelhos óticos para tomar imagens por meio da luz e, principalmente, ser capaz de transformá-las, ou seja: tratá-las em benefício de diversas funções sociais e, entre elas, a função estética.

Quando a fotografia é produzida no campo da Arte, da expressão ou da publicidade, não há uma responsabilidade social com respeito à preservação do evento que gerou o ato fotográfico em si, mas o que interessa é o destino que se dá a fotografia. No campo da Arte o compromisso é com o sistema de arte, a estética e a expressão. No campo da fotografia publicitária o compromisso é com a produção de imagens que correspondam ao objetivo comercial assumido pelo compromisso estabelecido entre o contratante e o prestador de serviço, normalmente destinado a realização de peças para a informação e difusão de bens, produtos e serviços mediante a produção, edição e veiculação.

Resultado de imagem para David la Chapelle, "Burning down the house"

Acima a foto de David la Chapelle, "Burning down the house" com Alexander Mcqueen e Isabela Blow de 1996, mostra a liberdade e imaginação do fotógrafo e, obvio, a produção editorial, a locação, figurinos e o tratamento digital, entre outros...

As fotografias vinculadas à arte ou à área comercial como na publicidade e propaganda, são normalmente tratadas e, em alguns casos, manipuladas e transformadas para obterem o máximo de efeito possível em relação aos seus leitores e apreciadores. É admissível até mesmo que sejam modificadas incluindo e excluindo partes, reforçar, destacar, reduzir ou obliterar dados para que possam cumprir melhor sua função simbólica, comunicativa e comercial. Nem sempre uma boa imagem nasce pronta, precisa de refinamento pois sua qualidade depende das habilidades e da capacidade técnica e estética do criador, caso contrário, o efeito parecerá falso e isso é péssimo em qualquer circunstância.

Como se vê há duas situações diferentes que, embora opostas, convivem num mesmo contexto social: de um lado, as imagens cujos registros devem ser fidedignos e preservados como foram obtidos e, de outro, aquelas que podem sofrer transformações para atingir sua finalidade. Nos dois casos as visões são muito específicas e é essencial que tanto o profissional do registro documental, quanto o da criação, tenham consciência de suas responsabilidades e estejam preparados para realizar suas imagens dentro do segmento social no qual se enquadram com competência profissional, seja ele documental ou criativo.

Hoje em dia, tanto as câmeras quanto os computadores possuem recursos para tratamento de imagem. A simples escolha de uma extensão ou sistema de arquivo para armazenar as imagens na câmera fotográfica já define, de antemão, o nível de intervenção na imagem. Com exceção do sistema RAW (cru) de arquivo, onde é possível manter os dados íntegros como na tomada, os demais sistemas como JPEG, GIF,PNG, TIFF entre outros, empregam meios de armazenamento e compactação que não permitem voltar atrás e obter os dados originais como pareciam no mundo natural no momento da tomada.

O tratamento das imagens também ocorre no computador por meio de programas aplicativos que permitem edição/editoração de imagens. Há vários deles disponíveis atualmente.No contexto comercial o mais famoso é o Adobe Photoshop, um programa de editoração e tratamento de imagens de alta performance para profissionais de imagem. Semelhante a ele, mas de livre acesso, é o GIMP disponível para o público sem nenhum custo.

Outro aplicativo na moda entre os usuários de sistemas de telefonia móvel é o Instagram, um programa de tratamento instantâneo de imagens oferecido gratuitamente para os proprietários de alguns celulares ou usuários de algumas plataformas, sistemas operacionais ou rede sociais. Este sistema possibilita que as imagens tomadas pela câmera de um aparelho celular possam ser "maquiadas" imediatamente (tratadas por meio de filtros) e remetidas aos demais usuários de redes. Na realidade não são programas de edição, apenas modelam a imagem segundo escolhas num conjunto de “tratamentos” pré-definidos no sistema criando a ilusão de eficiência quando, na verdade, o que se faz é a aplicação de uma manipulação previamente elaborada pelo criador do programa.

Como se vê, praticamente, não há fotografia sem tratamento a questão é: quando tratar, quanto tratar, o que tratar e como tratar, pois não temos a opção de não interferir ou não tratá-las pois, as coisas nem sempre são o que parecem ser...

Abaixo uma versão "tratada", da foto que abre este artigo. Imprimi em papel de algodão e interferi com pincel e água transformando-a em aquarela. Como digo: Em arte nada se perde, tudo se cria, tudo se transforma...


Agradeço a leitura e compartilhamento.

Nenhum comentário: