REFLEXÕES - Arte e Artesanato: Relações de aproximação e afastamento.

Artesanato é Arte? Quando algo é Arte e quando é Artesanato? Estas são questões que sempre chamam a atenção quando pensamos em Arte Visual.

Quando olhamos para trás, especialmente, para as manifestações artísticas tradicionais, vemos que a maioria delas depende das habilidades psicomotoras como o desenho, a pintura, a modelagem, a escultura, as montagens, as incisões e a gravura entre outras poéticas que posso ter omitido. Constatamos que há a necessidade da manipulação de materiais, instrumentos e ferramentas para a realização destes processos e que, sem isso, as obras não podem ser configuradas, logo, este é um primeiro ponto de contato entre o artesanal e o artístico. No entanto, até que ponto, o aspecto artesanal interfere ou define o processo de criação artística e quanto é importante para ele?

Grande parte das manifestações artísticas humanas dependem de ações corporais e, principalmente, de habilidades no desempenho destas ações. Como exemplo podemos pensar na dança que exige um controle extremo do corpo em movimento. Se olharmos a música instrumental, vemos que um instrumentista só consegue interpretar uma partitura musical se tiver o completo domínio do instrumento, ou seja de suas mãos sobre ele. Obviamente não há como ter o domínio psicomotor sem que haja também domínio cognitivo. Nesse caso, estas duas habilidades são exigidas da arte e do artesanato, como são também exigidas de um cirurgião, de um odontólogo e também de um ourives, de um biólogo e em outras áreas em que habilidades manuais são condições sem as quais uma pessoa não consegue exercer com eficiência as tarefas de sua profissão.

Bem, então dá para perceber que as habilidades manuais são necessárias em muitos campos, inclusive no da arte ou do artesanato. Mas é necessário ainda distinguir arte e artesanato, nesse caso, acredito que seja mais uma questão de função, interesse, finalidade e até de nichos ou segmentos culturais que, de um modo ou de outro, independem de habilidades manuais ou corporais.

Embora a artesania exigida nas primeiras manifestações artísticas fosse muito maior do que a que se exige das manifestações atuais, esta não é a questão principal da Arte Visual contemporânea.
A arte tradicional requeria grandes habilidades dos artistas ou daqueles para os quais delegava a produção, pois, como construtores e imagens e narrativas, acreditava-se que, ao reproduzir as imagens assemelhadas ao mundo natural era um valor e uma qualidade artística. Só a partir do Renascimento que a distinção entre Artesanato e Arte passou a ser considerada como uma distinção importante, pois até então, se entendia os produtores de arte como artesãos especializados.

Há também um fator importante que é considerar a fatura de um objeto como parte do processo criativo. Reconhecer as habilidades técnicas de um artista como um dom ou valor fazia com que aqueles que possuíssem mais habilidade fossem considerados melhores do que aqueles que não as possuíam. As habilidades manuais eram um diferencial importante para a consagração de um artista. Isso foi reforçado também com o Modernismo, só que no sentido oposto, aqueles que explorassem, criassem, pesquisassem, investigassem, inventassem novos procedimentos, materiais, estratégias discursivas e soluções plásticas ou conceituais passaram a ter maior reconhecimento, independente de possuírem grandes habilidades manuais ou artesanais. Contudo, a associação entre habilidades pragmáticas e artesanais ainda eram consideradas pertinentes ao campo da Arte e seus fazeres.

Com o desenvolvimento da industrialização no século XVIII e XIX surge a primeira crise de identidade entre arte e artesanato. Os processos de mecanização industrial começam a reprimir a atividade artesanal, não são mais os artesãos que fazem móveis, utilitários, vestuários e objetos para a decoração, ornamentação. Entende-se que isso leva a uma "desumanização" da produção e a consequente transformação das habilidades dos artesãos e artistas para a simples tarefa de operação de máquinas para a produção em massa. Willian Morris, artista, inspirado no discurso do crítico de arte John Ruskin passa a defender a produção artesanal como fator de qualidade técnica e cultural. Instaura o Movimento Arts & Crafts e funda a Morris, Marshall, Falkner & Couma empresa destinada a empregar artistas e artesãos na realização de projetos e produtos. Este movimento também contribuiu para Walter Gropius definir o projeto pedagógico da Escola Bauhaus alemã no século XX, onde a relação entre forma/função/estética se torna uma proposição conceitual, o que acabou sendo a base para a criação do Design como campo de conhecimento, formação e produção vinculado à indústria.

Há dois aspectos que decorrem destas falas: uma é o fazer manual tomado como um fator importante da realização artística em várias áreas e outra é a imposição das tecnologias de produção industrial em massa que suprimem os fazeres manuais. É como se o desenvolvimento tecnológico fosse o único e grande algoz da arte ou da artesania. Para tentar esclarecer melhor isso, volto a problematizar algumas questões apontadas anteriormente quanto a: função, interesse, finalidade, nichos ou segmentos culturais. O mundo muda e a arte como uma manifestação social também muda!

A primeira questão: As funções da Arte ou Artesanato são as mesmas?
Primeiro temos que definir o que se pode entender por Função. Como estamos no contexto da Arte, vamos tomar por referência as Funções da Linguagem de Jakobson que, entre as diferentes funções que identifica, admite a Função Poética, centrada no fazer estético. É assim que entendo a finalidade primeira e fundadora da Arte, da expressão ou manifestação artística: a estética antes de qualquer outra.
Cabe também esclarecer que Estético ou Estética não é sinônimo de Forma ou Plástico ou Cosmético ou qualquer outra interpretação insólita deste termo. Estética é um ramo da filosofia dedicada aos estudos referentes aos princípios e procedimentos poéticos fundadores da criação artística. É um Substantivo e não um Adjetivo. Estética é o que motiva e ampara a criação artística, independente de outras finalidades que venha a cumprir ou realizar no contexto social.
Nesse sentido, embora haja na configuração de várias manifestações artesanais elementos relacionados à habilidades motoras e componentes plásticos e visuais, embora surjam da vernacularidade do contexto do qual resultam, não se pode dizer que a função do Artesanato seja Estética. Embora muitos deles se destinem à ornamentação, decoração e, na maior parte das vezes, ao utilitarismo, não significa que sejam, por definição, Arte.
Obviamente que a restrição aqui colocada tem uma base erudita e condicionada ao saber construído e consolidado no campo da Arte Visual no contexto da tradição ocidental. Por outro lado, se considerarmos a cultura como o campo de todas estas manifestações, inclusive a antropologia e as variações etnográficas e populares estaríamos, nesse caso, considerando que todo fazer manual, industrial ou qualquer outro que surja da cultura humana é Arte, contudo, isso é difícil sustentar.

A segunda: Os interesses da Arte ou do Artesanato são os mesmos?
Pode-se dizer que o principal interesse da Arte é a Expressão, mas não qualquer expressão. Quando alguém manifesta sua indignação por algo que lhe ocorreu, não significa que isto seja expressão artística, embora manifeste seus sentimentos mais sinceros. Entendo que a Manifestação artística se destine a revelar aos outros o caráter estético que motiva e estimula a criação.
Portanto o principal interesse da Arte, a meu ver, é a própria pesquisa. Um artista se dedica a explorar os potenciais expressivos tanto pessoais quanto dos meios, recursos e potencialidades que emergem do processo e das proposições que estabelece como metas para sua criação.
O Artesanato, por outro lado, busca fins quase que exclusivamente pragmáticos. Este pragmatismo se mostra em diferentes dimensões: um diz respeito aos produtos criados dentro da tradição vernacular e com finalidades funcionais como a confecção de objetos e utensílios criados a partir dos materiais disponíveis ou tomados do meio para transformá-los em coisas utilitárias como recipientes, vasos, colheres e outros objetos destinados ao uso; outra dimensão é a ornamental ou decorativa na qual os objetos criados são destinados a enfeitar ambientes; outra ainda, compreende a função simbólica, na qual a criação se destina a produzir artefatos de caráter místico como amuletos, representação de divindades ou entidades religiosas sem fins artísticos propriamente ditos.
Na maioria das vezes, se destinam ao contexto no qual estão inseridos, suas comunidades e ambiente e não ao circuito ou sistema de arte.
Embora, não se possa negar que muitos artistas dependam ou visem o mercado de Arte, tanto por questões de sobrevivência quanto de interesses exclusivamente econômicos, ainda assim há diferenças substanciais em comparação com o campo artesanal, pelo menos a diferença entre o erudito e o popular que orientam um e outro.

A terceira: Os fins de uma e de outro são os mesmo?
Como argumentei até agora, percebe-se que os fins de um e de outra são diferentes. Se para a Arte a questão estética é priorizada sobre a material ou pragmática, pode-se dizer que para o Artesanato, a questão pragmática é muito importante, mesmo porque a maior parte da produção artesanal se encontra nas camadas economicamente mais baixas da sociedade e, em muitos casos, é a única relação que se tem, supostamente, com a "arte". Outras vezes é um meio ou aporte econômico para a renda de muitas famílias.
Obviamente que este tipo de constatação reforça a ingerência econômica do poder instituído pelo capitalismo que manipula a produção e circulação de bens elevando ou enaltecendo uns em detrimento de outros.
Pode-se dizer que há muito interesse comercial sobre a Arte na medida em que uma grande parte dos ativos financeiros de grandes empresas e capitalistas passam por esta ponte. A questão é que à elite econômica mundial não interessam as manifestações populares pois não contam como o apoio e a difusão da mídia como os artistas adotados pelo mercado.
Embora o mercado faça parte do sistema cultural e econômico da sociedade a Arte, como parte dele, não está isento de interferências e interesses. Contudo, não define que a produção artística seja única e exclusivamente destinada ao mercado. Há uma certa expectativa para que tal produção  seja diversificada o suficiente para atender tanto a demanda cultural quanto de mercado.

A quarta e, por enquanto, última: em que nichos ou segmentos culturais ela e ele atuam?
Seguindo as linhas de raciocínio que apresentei até agora, posso dizer que há diferentes nichos ou segmentos culturais nos quais tanto a Arte quanto o Artesanato encontram respaldo social.
O Sistema de Arte é o contexto do qual fazem parte tanto os produtores, difusores, estudiosos, colecionadores, instituições artísticas como museus e comerciais como galerias, marchands e leiloeiros. Embora não existam regras para a constituição deste Sistema, há condutas e comportamentos que, ao longo do tempo, se consolidaram e estruturam os modos de produzir e consumir Arte na sociedade. Por outro lado, não há nada disso destinado ao contexto artesanal,
Embora existam programas de pesquisa institucionais dedicados tanto aos estudos da Arte quanto do Artesanato. Existem também institutos e museus para uma e para outro, assim como mercado para uma e para outra.
Não considero ser relevante estabelecer distinções entre uma e outro, já que tanto uma quanto outro, fazem parte do mesmo contexto cultural no qual vivemos com todas as possibilidades e potenciais para que ocorram diferentes manifestações, independente do nichos ou segmentos nos quais se encaixem ou para os quais se destinem.

Acima, uma imagem típica do artesanato nordestino com temática regionalista. http://istoecampanha.blogspot.com.br
Observe a imagem acima: nela é possível exemplificar o que disse à respeito do Artesanato até aqui. Há, sem dúvida, um domínio técnico sobre instrumentos e materiais, embora dedicado à reprodução em série de objetos que se destinam ao mercado do que se pode chamar, no senso comum de "Arte Popular". Na minha opinião Arte Popular existe e condiz com os mesmos critérios da Arte Erudita, apenas que as orientações estéticas, temáticas e poéticas se diferenciam uma da outra, mas ambas se diferenciam em relação ao Artesanato.

Para deixar clara a diferença entre o Artesanal e a Arte, observe abaixo a obra de Jackson Pollock:



Pollock desenvolveu um procedimento que revolucionou o modo de pintar: ao invés de aplicar a tinta na superfície da tela como comumente se fazia, passa a produzir suas obras por meio de "respingamentos", projetando, por meio de gestos, a tinta colhida pelo pincel sobre a superfície da tela, processo chamado de Action Painting. Nesse caso, a habilidade de pintar, como se entendia anteriormente, assumiu um outro patamar onde a questão Performática e Gestual se torna o meio e modo de fazer e reduz a, praticamente, zero, a habilidade de manipular pincéis,
Hoje em dia o que se propõe no contexto da Arte é que o observador, apreciador crie um diálogo com a Obra de Arte por meio de reflexões que, neste caso, chamamos de Estética. Espera-se motivá-lo para analisar os processos constitutivos e propositivos que orientaram o autor e como, ele enquanto expectador, possa tirar conclusões próprias a partir dali.


Auto Retrato de Chuck Close, 1968

O que se vê aqui é uma pintura! Incrível não? Até parece uma fotografia!
A proposição de Close se enquadra dentro do Hiper-realismo, tendência estética que surgiu no contexto da Pós-Modernidade, a partir da década de 1960.
Os artista dedicados a este processo se propunham ao desenvolvimento de habilidades psicomotoras extremas com o fim de "Enganar a Vista". Queriam criar a ilusão de que o expectador estivesse diante de uma fotografia mesmo. Recorriam, inclusive, aos efeitos óticos que as lentes fotográficas produzem. Neste sentido pode-se dizer também que tinham um alto domínio técnico, uma excelente "artesania". No entanto, devo dizer que não era a habilidade manual que estava em jogo, mas sim a ilusão, o efeito de realidade como elemento de significação.

Entretanto, não é apenas a técnica ou a habilidade em realizar uma tarefa que qualifica um artista ou um artesão.

Peça de artesanato indígena onde a temática e o material se origina no seu meio ambiente.

Na imagem acima, vemos a representação de um conjunto de onças, supostamente mãe e filhotes. Percebe-se que a pessoa que a realizou detém os domínios técnicos necessários para lidar com o material e com as ferramentas exigidas para isto. Quero dizer que, tanto para a produção artística quanto para a produção artesanal, há dependência de diferentes habilidades, sejam elas cognitivas ou psicomotoras. As escolhas por quais habilidades serão aprendidas, dominadas e desenvolvidas para a execução de suas obras, dependem dos produtores. Para criar, para manifestar-se dentro de uma poética ou para construir algo dentro de uma técnica há que se aprimorar certos domínios. Neste sentido tanto a Arte quanto o Artesanato se parecem. Mas como dissemos os fins são diferentes.

O artesão não tem qualquer preocupação em propor maiores reflexões em torno de seu trabalho, senão ofertar um produto que ele deve saber fazer muito bem. Normalmente o que ele faz é desenvolver suas habilidades manuais para a realização de um produto e investir na sua reprodução em maior escala e, como não é industrial, a manutenção de sua atividade depende em grande parte de seu fazer individual, o que exige dele apenas habilidades pragmáticas, pouco reflexivas. Para ele, basta fazer o que se propõe a realizar e isto é suficiente para mantê-lo ativo no exercício de seu ofício em relação ao seu público, pois para ele não há cobranças de caráter crítico, conceitual ou estético.

Pintura artesanal publicada no rj.quebarato.com.br,

Para o artesão basta agradar ou enfeitar algo que sua meta já foi completamente cumprida. Seus trabalhos não são submetidos a qualquer tipo de julgamento, sejam técnicos ou estéticos.

Mas, ao artista não basta fazer algo bem, é necessário ir além, é preciso promover a interação entre a obra e o apreciador, estimular o diálogo, a reflexão crítica sobre o pensamento estético e aprofundar os conceitos que amparam a realização de seu trabalho poético. Em suma, enquanto o trabalho do artesão é essencialmente prático e objetivo, o do artista é filosófico, intelectual e, em boa parte, subjetivo.




A obra de Waltércio Caldas, "A Emoção Estética", acima, revela a orientação conceitual do artista dedicado a criar novos estímulos estéticos, por meio de diferentes tipos de materiais e propostas. O Conceitualismo não depende, necessariamente, de domínio psicomotor as obras se caracterizam por  ideias, conceitos e proposições que envolvem, principalmente, reflexão estética.
Esta imagem faz parte de seu livro: Manual de Ciência Popular, no qual produz fotografias a partir da combinação de diferentes elementos e objetos. Ampara tais imagens por meio de textos que perpassam reflexões estéticas, filosóficas e irônicas.

Como Funciona a Máquina Fotográfica, Waltércio Caldas, Manual da Ciência Popular.

Como vemos, estes dois universos podem ser parecidos, mas são extremamente distintos, cada um no seu contexto. A arte, dita erudita, é um campo de experimentação e pesquisa especializada que opera num sistema complexo e sofisticado, dependente da intermediação de estudiosos e críticos para atingir a plenitude de suas proposições enquanto o artesanato opera sem exigências conceituais e estéticas. Enfim, quando pensamos nestes dois contextos, fazemos inferências e exercitamos nosso conhecimento sobre arte e cultura, boas reflexões....
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