ANATOMIA: EM BUSCA DO CORPO OU DA ARTE?



Anatomia, do grego, significa estudo das partes, normalmente aplicado à anatomia humana, mas o que interessa nesse texto é sua relação com a Arte. A anatomia humana sempre foi uma questão presente na desde seus primeiros momentos da criação artística e definiu boa parte do percurso de suas imagens. Reproduzir a aparência das coisas foi, para a Arte Visual, um ponto de apoio importante para o processo de criação, desenvolvimento, comunicação e informação que se consolidou na História da Arte até, praticamente, o Modernismo. Talvez tenha sido por isso que a anatomia, chamada algumas vezes de anatomia artística, foi um dos tópicos mais importantes para a construção da aparência humana racionalizada.


Em alguns momentos da história, mostrar uma imagem que se parecesse com a realidade fazia sentido para os seres humanos e isto se tornou, por muito tempo, uma questão de suma importância para a arte e para a sociedade. Representar o visível parece ser um modo de apropriar-se dele, apreender, possuir, conquistar algo que, embora ocupasse o mesmo lugar, território ou campo visual, seria difícil ou mesmo impossível obter, ter ou manter. Assim a representação entra em cena: num primeiro momento no lugar de alguma coisa ausente, depois como um modo de tornar presente uma ideia, uma forma, uma impressão.


Representar pode ser um modo de evocar, referenciar-se àquilo que não está presente no discurso, mas que é necessário para que o conhecimento ou o argumento se consolide, logo, representações mentais, conceituais e visuais são modos de construir significados ou apresentá-los e difundi-los. Neste sentido, ater-se à forma, à aparência das coisas é uma maneira de manter-se fiel à existência delas mesmas e trazê-las para o discurso de uma maneira convincente, logo, representar algo de maneira semelhante ao que se vê é um bom argumento e, ao mesmo tempo, uma estratégia discursiva eficiente.


Obviamente, nem sempre as imagens fizeram ou fazem justiça à natureza ou à realidade visual à qual pertencem, parecer-se com alguma coisa já é um modo de dizer o que se pretende com maior ou menor precisão sobre o assunto. Se olharmos para as manifestações artísticas da humanidade, vemos que os primeiros seres humanos criavam imagens com sentido mágico, simbólico, espiritual e não documental ou expressivo, portanto, não havia qualquer obrigação de fazer com que as imagens se parecessem com o que viam, apenas que se referissem a isso. Estas imagens podiam ou não se parecer com as coisas do mundo. A proximidade anatômica era mais uma decorrência da observação e do conhecimento sobre os animais com os quais convivia e dos quais dependia para viver do que resultado de estudos sistemáticos sobre eles.


Embora a representação da figura humana aparecesse em um ou outro momento, não era uma prioridade nos primeiros momentos fazer com que parecessem figuras do mundo natural, já que o que mais importava era a sobrevivência, assim elas não faziam referencias específicas à anatomia, eram estilizações antropomórficas, humanoides, mas pouco parecidas com os seres humanos, alguns exemplos podem ser destacados: as chamadas Vênus pré-históricas de diferentes locais e períodos podem dar uma ideia disso a chamada Vênus de Willendorf, descoberta em 1908 e a vênus de Hohle Fels descoberta em 2008, coincidentemente, 100 anos depois da primeira mostram modos de ver e reconstituir a forma humana:

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Vênus de Willendorf, Áustria, encontrada em 1908.

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Vênus de Hohle Fels, Alemanha, encontrada em 2008.
Embora nenhuma delas seja uma referência direta à anatomia humana era o que se propunha fazer naqueles períodos tão distantes da história. Há muitas outras representações figurais semelhantes que remetem às formas ou à "anatomia" feminina. São comumente entendidas como homenagem à mãe,  terra mãe ou aos cultos de fertilidade com vistas a garantir a sobrevivência da espécie ou, pelo menos, do grupo social. Podem se imagens de devoção ao feminino ou amuletos ou, ainda, para os mais afoitos, um objeto sexual.
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Na Antiguidade começam a surgir as manifestações que recorriam à anatomia humana. Contudo não buscavam reproduzir, necessariamente, a aparência humana mas estabelecer relações de proporção como se encontra na estrutura óssea, muscular e até mesmo fisionômica, nem sempre a aparência do modelo pode influir na construção da imagem. A estilização é substituída pela normatização, ou seja, ao invés de buscar a reprodução do visível, elaboram meios e convenções para representar a figura humana de modo racionalizado.

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Embora os Egípcios, por conta do desenvolvimento dos processos de mumificação, tivessem um bom conhecimento anatômico e mesmo da fisiologia, estes conhecimentos não são demonstrados nas representações de suas imagens. Elas eram orientadas por convenção e não pela aparência natural. Não quer dizer que não fizessem "Retratos", apenas que as representações utilizadas nos palácios, templos e túmulos, seguiam normas quanto às dimensões, formatos e cores em busca de uma hegemonia e constância representativa, uma espécie de pradrão, linguagem estável.


No período Arcaico grego já há pretensões de mostrar uma aproximação maior com o corpo humano, embora a estrutura anatômica seja, praticamente, intuitiva e também padronizada. Representação de jovens como Kouros e Kores, como são nomeados estas figuras, são estilizadas e normatizadas em padrões recorrentes.



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Contudo, no período Clássico as tentativas de se aproximar um pouco mais da anatomia humana incorporam a simetria e estrutura óssea e muscular, recursos de aproximação com o visível, embora ainda recorram a sistemas normativos mais racionalizados e pouco naturalistas como, por exemplo, os Cânones adotados pelos escultores tomando como base a cabeça humana.


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Escultores conhecidos como Praxíteles, Lisipo e Policleto, optaram por definir como parâmetro de proporção a medida da cabeça, assim, variando o número de cabeças para definir a altura das figuras as deixavam mais esbeltas ou mais densas.

As proposições mais próximas do naturalismo vais aparecer com a Arte Romana. Lá surgem os retratos. O retrato é uma representação naturalista do retratado. Convencionalmente se acredita que o retrato tenha a obrigação de se parecer com o retratado. Esta condição surge ainda no Império Romano quando as imagens passam a reproduzir a aparência "real" das pessoas, sejam governantes ou populares abastados.

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É pouco provável, ao olhar essa série de rostos, que as pessoas retratadas não se parecessem com seus retratos, pois as feições, expressão fisionômica, idade e textura da pele, calvície, etc, são mostradas com convicção. Há uma clara referência à configuração anatômica dessas faces e não apenas uma "idealização" da aparência. Embora tal atitude tenha sido importante para a Arte naquele período, não quer dizer que durasse para sempre.

Na Idade Média, por exemplo, as representações humanas se afastam novamente do naturalismo e se embrenham no simbolismo.

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As imagens voltam a ser rudimentares e se preocupam em narrar eventos e acontecimentos religiosos de deuses e mártires e não em reproduzir o visível.

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É no Renascimento Italiano que a anatomia deixa de ser algo superficial e intuitivo e passa a ser estudada e ser desenvolvida como um elemento de significação tão importante para a qualificação do conhecimento e, por consequência, do próprio artista a ponto de tornar-se um campo de estudo científico.

A produção artística deste período recebe um reforço extraordinário da observação do mundo e sua transformação em imagem por meio dos estudos da perspectiva na superfície plana e o aprimoramento da escultura no contexto ambiental tridimensional. Bons exemplos são as esculturas de David, realizadas nesse período por Donatello, Verrochio, Michelangelo e Bernini, já no Barroco. Todos eles buscam a representação da anatomia humana perfeita.

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No desenvolvimento dos processos e procedimentos de representação imagética, os estudos sobre anatomia enveredam pela representação científica. A qualificação dos artistas passa pela cientifização e muitos deles são estimulados para desenvolver estudos técnicos e não simbólicos ou expressivos, é o momento em que a Arte se aproxima da ciência natural e a anatomia humana é contemplada e passa a ser objeto de estudo e pesquisa tanto de artistas quanto de anatomistas até hoje respeitados.
É um grande salto e também uma grande mudança de rota, sair da representação artística para a apresentação médica. Entre eles podem ser citados pioneiros como Mondino de Luzzi, Leonardo Da Vinci, Walter Hermann Ryff e Andreas Vesalius que definem esta postura no contexto do período Moderno.

Mondino de Luzzi, or Mundinus de Liuzzi or de Lucci, (1270 – 1326), anatomista, escritor e professor de cirúrgia que viveu em Bolonha e estimulou a prática da dissecação pública.

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Mondino dei Liuzzi (1270-1326) assiste ad una dissezione dalla cattedra; incisione tratta da Fasciculus medicinae (1493)


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Mondino di Luzzi, Anathomia, 1541

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 Mondino Dei Luzzi's Anatomia Mundini, Ad Vetustis, 1541.

Entretanto, é com Leonardo Da Vinci, (1452-1519), que vamos reconhecer um dos primeiros estudiosos da anatomia humana. Ele não se preocupou apenas com o registro da estrutura anatômica, mas também em compreender o funcionamento do corpo humano: a fisiologia.

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Dissecação do corpo feminino, 1505.

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Dissecação do Coração e identificação do sistema circulatório.


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Dissecação do cérebro.
Além disso, Leonardo se preocupou também com as questões de proporção recorrendo à concepção de Vitrúvio representando a configuração proporcional definida por ele no chamado Homem Vitruviano.

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Homem Vitruviano

As proporções do “Homem Vitruviano”, de 1490, traz o conceito da Divina Proporção para o Renascimento.


Mais tarde, o estudioso Alemão Walter Hermann Ryff, publica a Anatomia Mórbida, em 1542. São estudos dedicados a entender o funcionamento do organismo humano.

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"Die Kleyner Chirurgei," Walter Hermann Ryff, 1542

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Plate 1 of Ryff’s Des aller furtrefflichsten, hoechsten und adelichsten Gschoepffs aller Creaturen, 1541.

Com Andrea Vesalius, (1514-1564), os estudos de anatomia vão encontrar seu maior aliado e difusor. Seu livro: De Humani Corporis Fabrica, publicado em 1543 é um atlas de anatomia humana, didático e eficiente para este campo de conhecimento.

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Vesalian Anatomical Theater and Practice;
Vesalius's Hands are On/In the Cadaver's Viscera (frontispiece of De fabrica)
Pode-se dizer que Andreas Vesalius foi criador do primeiro livro que servia aos estudos médicos e artísticos.

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De humani corporis fabrica librorum epitome.Basileae, ex officina Ioannis Oporini, 1543. [Ce.1.18]

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Uma das imagens mais icônicas de Vesalius é o ser humano, esfolado, segurando sua própria pele:

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Os estudos da anatomia humana se desenvolvem também nos séculos subsequentes, sendo temas de muitos artistas, a obra abaixo é de Michiel Jansz van Mierevelt, pintor holandês cuja obra é: Lição de anatomia do Dr. Willem van der Meer, de 1617.



Em 1632, Rembrandt vai pintar a célebre obra: Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp.




Em 1767, Jean-Antoine Houdon, esculpe L´Écorché em mármore, evidenciando a estrutura anatômica muscular humana, mostrada abaixo:



Houdon: l'Ecorche (Flayed Man)

Essa imagem da estrutura muscular é recorrente, retomada algumas vezes, Vesalius a coloca com a própria pele, Houdon, no Neoclassicismo francês a mostra em mármore. Novamente, há alguns anos atrás, um anatomista contemporâneo: Gunther Von Hagens. Professor de anatomia, alemão, nascido em 1945, em Liebchen, cria a técnica de Plastinação que, aplicada em cadáveres, é capaz de preservá-los para o estudo de anatomia. A técnica é tão eficiente que se encanta com ela e passa a estruturar seus cadáveres ao ponto de reler Vesalius ao mostrar um cadáver esfolado expondo a própria pele.

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Todavia, não para por ai, Von Hagens, ao contrário de manter a postura formal e fixa, como fazia Vesalius e outros anatomistas, posiciona os corpos em atitudes dinâmicas de movimento e ação, em geral em atividades esportivas, sugerindo aos corpos plastinados e inanimados a sensação de "vida". Isto faz com que essa abordagem sui generis o leve a mostrar suas obras, não apenas nos museus de anatomia ou história natural, mas a muitos outros ambientes expositivos como feiras e galerias de arte pelo mundo. De novo a questão se inverte: agora da anatomia para a Arte...

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Suas peças, em última hipótese, podem ser consideradas como uma homenagem ao ser humano, à vida em óbvia oposição à morte, nesse sentido é possível considerar o aspecto simbólico que orienta seus trabalhos, sem perder de vista a questão técnica, científica e anatomica.

Trazendo para o campo exclusivo da Arte, as questões da anatomia voltam à cena, especialmente recorrendo à representações humanas cotidianas. A partir da década de 60 do século passado vários artistas recorreram à representação naturalista, naquele momento, "Pós-modernista", chamados de Hiperrealismo.

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Duane Hanson, Super marketing lady, 1969.

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Duane Hanson, Turistas, 1988. 
As proposiçõs estéticas Hipperrealistas buscavam simular circunstâncias e situações do dia a dia recorrendo aos novos materiais e processos plásticos trazendo novamente a hiper-perfeição à Arte Visual. Esse novo Hiperrealismo opera sob duas questões principais: de um lado busca o requinte da representação anatômica precisa e, de outro, cria variações dimensionais, para maior ou menor, preservando a proporcionalidade do corpo humano.

Atualemte Ron Mueck - Ronaldo de Oliveira Mueck- nascido em Melbourne, em 1958, escultor australiano volta à poética Hiperrealista. Recorre à técnicas contemporâneas como o uso de materiais sintéticos e industriais para a construção de obras de caráter naturalista, variando as escalas proporcionais em suas imagens.

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Enfim, a relação da Arte com o corpo humano e sua anatomia sempre foi uma questão presente ao longo do tempo, seja pela atração ou o estranhamento que pode causar, podendo nos agradar ou não...

Agradeço àqueles que chegaram até aqui, peço que curtam e compartilhem, obrigado.

9 comentários:

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