REFLEXÕES - Imagem e Arte: aproximações e afastamentos.


Meu mantra: "Imagem é uma configuração visual geradora de sentido". Este aforismo condensa numa frase o que, a meu ver, é a imagem e o utilizo como apoio para discorrer sobre ela e entendê-la melhor.
Grande parte das Poéticas em Artes Visuais se realiza por meio de imagens, contudo não significa que toda imagem seja Arte. Pode-se dizer que a aproximação entre imagem e Arte começou com a pré-história.

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Imagens da pré-história, Caverna de Altamira. Espanha.
Olhando para a aurora da humanidade vemos que foram justamente as imagens que constituíram as primeiras manifestações formais do ser humano e que, por sorte, chegaram até hoje. Desenhos, pinturas, incisões, modelagens, esculturas e construções fizeram parte da cultura humana desde o princípio.
Por isso se acredita que as imagens surgiram ao mesmo tempo que a Arte ou foi o contrário? Ao chamar àquelas primeiras imagens de Arte criou-se uma relação ambígua entre imagem e Arte e levantou uma questão importante: Fazer imagem já é, por princípio, um ato ou conduta artística ou para que uma imagem seja considerada Arte deve ter características ou propriedades específicas? Aqui reside a questão da aproximação e do afastamento entre estas duas instâncias.

A caverna de Altamira, na Espanha, é descoberta em 1868, ou seja, "oficialmente" só se descobre que o ser humano realizava imagens desde a pré-história a partir do século XIX, portanto, até então o que se conhecia da produção imagética eram aquelas realizadas a partir das civilizações da Antiguidade. Assim foi necessário retroagir o conhecimento das imagens de mais ou menos 10.000 para 40.000 anos e pior, como entender as imagens realizadas em períodos tão distantes e sem nenhuma pista?

Para melhor entender isso é só lembrar que, aos olhos do século XIX, a Arte Visual era associada às habilidades motoras. O artista era aquele que tinha o dom ou a capacidade de converter coisas, circunstâncias e cenas do mundo em imagens. Assim as imagens narravam, informavam, documentavam, representavam coisas do mundo. Grande parte da produção de imagens dependia das habilidades dos artistas, basta lembrar que o surgimento da fotografia só ocorre na segunda década do século XIX com um meio de "reprodução" e só no final dele é que se torna um meio "alternativo" para a "produção" de imagens.

Neste linha de raciocínio é admissível que as imagens pré-históricas, ao serem descobertas, fossem admitidas como artísticas. Me parece ter sido esta a primeira, mais plausível ou mais adequada hipótese para justificar sua existência naquele momento, só mais tarde foram aventadas outras possibilidades entendendo-as sob um viés mais antropológico vinculando-as às finalidades rituais, místicas e simbólicos. Nesse sentido, chamar de Arte àquelas imagens foi mais uma questão de reconhecimento cultural do que estético, no entanto, dada às suas características plásticas, não há como negar a presença de componentes estéticos.

Contudo não parece ser razoável pensar que o conceito de criação/apreciação estética amparasse ou mobilizasse a expressão naquele momento. Não se sabe nem mesmo o gênero de quem as realizou, nada impede de acreditar que pudessem ter sido realizadas por mulheres. É possível até justificar isso considerando que, ao cuidar da prole, no abrigo das cavernas sob as intempéries, estivessem mais presentes e disponíveis para realização daquelas imagens do que os homens que, supostamente, estariam fora e dedicados a coleta e à caça.

Os elementos visuais que orientam a estética plástica e sustentam até hoje a expressão nas manifestações da Arte Visual já estavam presentes naquele momento, sabe-se que não é possível atestar ou confirmar que aquelas obras tivessem apenas finalidade  artística, mesmo porque as concepções estéticas e conceituais que fundamentam o que se passou a considera Arte só se consolidaram, de fato, há bem pouco tempo. Somente a partir da Idade Moderna, com o Renascimento e as Academias de Arte, que os valores artísticos passaram a ser reconhecidos como distintos dos fazeres técnicos e artesanais que dominaram por muito tempo a produção de imagens.

Se num primeiro momento as imagens atendiam às necessidades rituais e mágicas, aos poucos foram sendo usadas para manifestar o poder dominante na sociedade, fosse por meio de sua presença nos palácios, templos e túmulos, ornamentando-os ao gosto e interesse de seus governantes, enaltecendo seu feitos e conquistas. Deixaram de ser feitas para dialogar com o sobrenatural e encantar os olhos dos deuses, mas para os olhos humanos e, principalmente, informar as conquistas e a força do poder, estabelecendo distinções entre opressores e oprimidos. Os combates, as guerras, a dominação se torna um tema comum e explícito nas imagens desde a antiguidade.

Estela de la victoria del rey Naram-Sin, hecha en piedra rosa. Los cuernos indican su paso a la divinidad.
Detalhe da estela de Naran-Sin, rei acadiano, cuja peça entalhada em arenito rosa, datada de 2.500 a.C., narra sua vitória sobre os inimigos.
Esse sistema narrativo está para a Arte assim como a propaganda está para a comunicação social. 
Registrar e difundir informações não garante conteúdos artísticos ou estéticos, apenas se apropria deles e lhes dá outro destino ou função social. Usando este raciocínio, é o mesmo que entender as imagens produzidas contemporaneamente nas mídias de comunicação social como expressão artística e não como meios de comunicação e estas imagens, são Arte?

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O Massacre de Quios, Eugene Delacroix, 1823. Em 1822, os gregos da ilha de Qios são mortos pelos turcos na Guerra pela independência da Grécia. Delacroix resolve tratar desse assunto  e fazer dele um alerta contra este tipo de atrocidade.
Delacroix usa de suas habilidades de artista para plasmar uma cena em que os vencidos, prostrados, revelam a barbárie humana. A temática social de índole ideológica é construída mediante os procedimentos da estética Neoclássica que dominava os primeiros anos do século XIX.

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Soldado ferido mostrado por Roger Fenton, realizada em 1856 durante a Guerra da Criméia. Uma das primeiras imagens fotográficas tomadas em ambiente de conflito. 

Com o advento da Fotografia, a produção de imagens deixa de ser exclusivamente realizada pelas mãos humanas e passam a ser produzidas e reproduzidas por aparelhos e máquinas. Neste sentido podem ser tomadas como registros de fatos e eventos, tornando-se documentos, testemunhas visuais incontestáveis de acontecimentos. Com isto surge outro impasse: a imagem fotográfica é Arte ou Documento?

Polêmica à parte, a produção de imagens por meio de aparelhos e sua reprodução e distribuição impressa assume uma dimensão tão grande e intensa constituindo sistemas de informação e narrativos capazes de comunicar dados e interferir nos percursos culturais chegando a ser estudadas como um fenômeno social na Cultura Visual. Simultaneamente as imagens produzidas por esse sistema passam a ser usadas na publicidade tornado-se uma presença constante no mundo atual, servindo até como estratégia  de criação artística na estética da Pop Arte e da Arte Conceitual e pós-moderna.


A obra "Retroativo I, de 1964, de Robert Rauschenberg, construída a partir da colagem de várias fotografias publicadas na época reverte o processo de informação para o processo estético-criativo.
A partir das constatações aqui arroladas é possível admitir que uma imagem pode cumprir várias funções simultaneamente sem que uma esvazie outra. Pode ser, ao mesmo tempo, Arte e informação, a questão é identificar quando isso acontece ou como estas interposições ou interpolações são realizadas intensificando ou diversificando funções estéticas ou pragmáticas.

Um bom exemplo disso são as fotografias publicitárias ou de moda, que operam qualidades e valores plásticos ou visuais com igual ou maior desenvoltura do que um artista, realizando obras dignas da mais sofisticada poética artística, no entanto, por mais que tais imagens igualem ou superem as qualidades plásticas ou visuais da produção artística, isso não é, por si só, uma garantia de “artisticidade”, embora tenham potencial para isto.

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Foto de Man Ray, de 1936 para a revista de moda Vogue, reúne aspectos estéticos e publicitários em abordagem inovadora por meio da luz e composição.

Ao fim e ao cabo, o que define se uma imagem é uma Obra de arte é, sem dúvida, sua destinação estética. As Obras de Arte visam relações de caráter conceitual e estético, visam a apreciação, fruição, como coisa da Arte e não só da mídia de informação. Uma construção artística não se destina, por princípio, a nenhuma função pragmática ou técnica, portanto, não se desvia ou ignora sua vocação original que é, em última instância a expressão artística.

Grato pela leitura, agradeço o compartilhamento.

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